Um dos poucos consensos em Brasília nos últimos meses é a necessidade de mudanças no sistema político brasileiro. Desde que as discussões para a reforma política se iniciaram, o foco dos debates se concentrou no formato das eleições parlamentares e nas fontes de financiamento para as campanhas. A cerca de um mês do prazo máximo para que o Congresso vote mudanças que tenham validade nas eleições de 2018, duas propostas avançam mais rápido: a adoção de uma cláusula de desempenho para partidos políticos e o fim das chamadas coligações proporcionais.
As medidas atacam uma característica muito particular da política brasileira: a hiperfragmentação dos partidos. Hoje, são 35 legendas aptas a funcionar, sendo que, dessas, 25 têm representação na Câmara. A escalada no número de partidos foi iniciada após o fim do bipartidarismo em 1979 e esteve diretamente associada ao dinheiro do Fundo Partidário e à possibilidade de que legendas elejam candidatos em associação com outras siglas, mesmo que a atuação após o pleito seja separada. Agora, a expectativa é a reversão dessa tendência, a grande mudança desde então.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de número 282/16, que agrupa ambas as medidas, já foi aprovada no Senado e em uma comissão especial da Câmara. Se passar no plenário, retorna à apreciação dos senadores – porque foi alterada pelos deputados – e pode vigorar já em 2018. Pronto para ser votado, o que deve acontecer na próxima semana, o relatório da deputada Shéridan Oliveira (PSDB-RR) cria uma barreira progressiva. Partidos precisarão de um mínimo de apoio popular para ter acesso ao dinheiro do fundo e ao tempo partidário de rádio e TV. Fica também proibido o formato atual das coligações, vinculando o resultado da votação à formação dos grupos que atuarão no Congresso.
Pela regra, a partir de 2030, os partidos políticos que não obtiverem um mínimo de 3% dos votos válidos ou elejam 15 deputados federais perdem o direito a verba do Fundo Partidário e a exibir propagandas em rádio e TV com recursos públicos. Também fica observada a necessidade de que as legendas tenham abrangência nacional: a votação deve ser dividida entre, no mínimo, nove estados brasileiros, com 2% em cada uma dessas unidades da federação ou, no caso da ultrapassagem ser por número de parlamentares, ao menos um eleito em cada estado. “Estamos diferenciando as legendas que têm respaldo popular daquelas que são estruturas sustentadas para comercializar recursos, como o tempo de TV nas campanhas”, argumentou Shéridan a VEJA.
Transição
Até chegarmos a esse número final, seria adotado um período de transição, com duração de três eleições. Em 2018, os partidos teriam que alcançar 1,5% dos votos no país (no mínimo, 1% por estado) ou eleger 9 deputados em nove estados; em 2022, a barreira passaria para 2% dos votos (com ao menos 1% por estado) e 11 deputados em nove estados; e em 2026, o índice seria de 2,5% (mínimo de 1,5% por estado) e 13 deputados, também em nove estados.
Levantamento feito por VEJA, tomando como base o desempenho dos partidos na eleição de 2014, mostra que em 2018 as novas regras já reduziriam quase pela metade o número de legendas com acesso ao dinheiro do Fundo Partidário e à propaganda em rádio e TV – apenas 18 conseguiriam superar a barreira. Nada menos que 14 siglas seriam barradas: PHS, PTdoB, PSL, PRP, Podemos, PEN, PSDC, PMN, PRTB, PTC, PSTU, PPL, PCB e PCO. Aplicando os critérios previstos para a eleição de 2022, também seriam barrados o PCdoB e o PSOL.
Shéridan afirma haver “grande maioria” para que o projeto seja aprovado quando entrar em pauta, o que o presidente interino da Câmara, André Fufuca (PP-MA), prevê para a semana que vem. Para Leonardo Barreto, doutor em ciência política pela Universidade de Brasília (UnB), a medida viria em boa hora, uma vez que o país está começando a sentir as dificuldades políticas dessa enorme quantidade de partidos. “Seria uma medida muito saneadora. As legendas de aluguel, que só existem para pagar as contas de seus donos, tenderiam a sumir”, afirma.
No entanto, ainda há algumas resistências. A dificuldade principal está na reação de partidos pequenos e nas alegações de que a cláusula pode restringir a atuação política de minorias, como alega o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), que argumenta que só seria possível pensar em um critério de desempenho se, ao menos por uma eleição, os partidos tivessem as mesmas condições financeiras e de tempo de televisão. “Se você tivesse a oportunidade de que todos os partidos apresentassem igualmente seus projetos, poderíamos aprovar a cláusula. Se não, partimos de uma desigualdade. No final das contas, você deixará sete partidos, justamente os envolvidos com a Lava Jato” afirmou o deputado a VEJA.
Conta salgada
Até o final de agosto, o Fundo Partidário já distribuiu 408,2 milhões de reais de dinheiro público às legendas em 2017, de um total que deve chegar à 641,3 milhões até dezembro, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O critério para a maior parte desse total é o resultado das últimas eleições parlamentares, mas 5% é dividido igualmente entre todas as legendas autorizadas a funcionar. O resultado disso é que agremiações como o Partido da Pátria Livre (PPL), que teve apenas 0,15% dos votos em 2014, já embolsou mais de 1 milhão de reais no ano.
Somando o formato da divisão do fundo com uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2012, que permitiu aos deputados “carregarem” consigo a sua cota proporcional nos recursos públicos, criou-se “uma legislação que incentiva a multiplicação de partidos”, aponta Leonardo Barreto, doutor em ciência política pela Universidade de Brasília (UnB). “Hoje partidos são criados aleatoriamente, sem razão e sem discussão com a sociedade”, argumentou Shéridan.
Nos últimos seis anos, nada menos do que oito partidos políticos foram criados no Brasil. O site do TSE informa, ainda, que hoje existem outras 64 legendas em formação, incluindo agremiações exóticas, como o Partido Democrático dos Servidores Públicos (PDSP), o Partido do Esporte (PE) e o Partido Nacional Indígena (PNI). É importante ressaltar que o projeto não vai proibir a criação de partidos, mas vai condicionar a sua existência ao financiamento com recursos próprios ao menos até disputar uma eleição e alcançar, ou não, a cota mínima de votos que será exigida pela lei. Somados, os partidos sem representação no Congresso já receberam quase 15 milhões de reais nos primeiros oito meses do ano.
“O problema é você ter uma regra que distribua igualitariamente entre todos os partidos, independente até de ter disputado uma eleição. E o que acontece? Você tem muitos partidos que, tendo ou não algum eleito, vão participar dessa divisão. Se você tem a garantia de financiamento público disputando ou não a eleição, você incentiva a criação de mais legendas”, explicou Leonardo Barreto.
Em 2017, os dez partidos que são aptos a funcionar, mas não tem nenhum representante no Congresso Nacional já receberam quase 15 milhões de reais
1º – Partido Social Democrata Cristão (PSDC) – R$ 2.622.637,15 – 0,52% dos votos
2º – Partido da Mobilização Nacional (PMN) – R$ 2.456.956,41 – 0,48% dos votos
3º – Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB) – R$ 2.399.883,39 – 0,47% dos votos
4º – Partido Trabalhista Cristão (PTC) – R$ 1.830.337,25 – 0,35%
5º – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) – R$ 1.338.112,84 – 0,19% dos votos
6º – Partido da Pátria Livre (PPL) – R$ 1.149.431,86 – 0,15% dos votos
7º – Partido Comunista Brasileiro (PCB) – R$ 852.638,61 – 0,07%
8º – Partido da Causa Operária (PCO) – R$ 636.821,70 – 0,01%
9º – Partido da Mulher Brasileira (PMB) e Partido Novo (NOVO)* – R$ 584.999,27 – 0%**
*O Partido Novo alega que não utiliza o dinheiro e que busca uma forma de devolver os valores
**PMB e Novo não disputaram as eleições de 2014
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
A barreira da Justiça
Essa não é a primeira vez que se tenta implementar uma cláusula de desempenho para limitar o número de partidos brasileiros. Aprovada em 1995, a barreira tinha critérios muito mais rígidos dos que estão sendo discutidos nesse momento, exigindo um mínimo de 5% dos votos e imprimindo sanções até ao funcionamento parlamentar das legendas que não a ultrapassassem a partir das eleições de 2006.
Dois meses após o pleito, em que só sete legendas obtiveram votos suficientes para manter o pleno funcionamento, o STF barrou a aplicação da cláusula, alegando que a legislação estava em desacordo com os princípios constitucionais da representação política. Onze anos depois, no entanto, os atuais ministros indicam que um novo questionamento não teria o mesmo sucesso. Entre os magistrados que já deram declarações públicas a favor da cláusula, estão Gilmar Mendes, presidente do TSE, Ricardo Lewandowski, Luis Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli.
No entanto, a aprovação pelo Congresso e os sinais positivos dos ministros não são suficientes para garantir que o caso não volte para os tribunais. Se a cláusula não for derrubada, outros pontos poderão. O principal é o trecho que institui as federações de partido, substituindo as coligações. A diferença principal está na atuação parlamentar: enquanto as coligações dizem respeito apenas às eleições, a federação determina que as legendas devem permanecer unidas durante toda a legislatura.
Além de imaginar que isso possa ser derrubado judicialmente, o cientista político Leonardo Barreto diz não ver como as federações possam ser “forçadas” na prática a permanecerem juntas. “Chegando lá, o deputado é livre para exercer o mandato, quem vai regular isso? Você pode dizer ao PT que ele obrigatoriamente vai ter que ficar ao lado do PMDB por quatro anos, só para termos um exemplo recente”, afirma. Existe ainda um outro ponto: os partidos poderiam disputar eleições separados em determinados estados, desde que no caso de uma federação regional (batizada de “subfederação”), não estejam incluídos partidos externos ao agrupamento nacional.
A deputada Shéridan, por sua vez, justifica que precisou fazer um relatório com chances efetivas de ser aprovado, o que inclui concessões aos partidos pequenos. “A federação é um sinal claro de que partidos políticos pequenos não vão ser simplesmente tolhidos pelo projeto. Coligação é outra coisa, federação exige afinidade ideológica”, argumenta. “Essa PEC é um começo, é um passo. É a base de um processo de saneamento”, concluiu.
Em junho, pesquisa Datafolha indicou que nada menos do que sete em cada dez brasileiros não confiam nos partidos políticos brasileiros. Entre os que ainda apoiam as atuais legendas, apenas 2% disseram “confiar muito” nestas. É essa a crise, associada ao impacto da Operação Lava Jato sobre a classe política, que dá o pontapé inicial para a mudança na configuração partidária do Brasil.
Essa nova formação está sendo acompanhada por um fenômeno que sempre existiu, mas que volta de forma mais intensa: as alterações de nome e sigla dos partidos. Inaugurado pelo antigo PTN, que adotou o nome de Podemos, o caminho pode vir a ser traçado por outros partidos nos próximos meses. Para o cientista político Leonardo Barreto, a questão central é se essa mudança virá ou não acompanhada de uma alteração no ideal programático dos partidos.
Entre as legendas que querem mudar estão o PP. Herdeira da Aliança Renovadora Nacional (Arena), a legenda quer abandonar a expressão “partido” e se tornar apenas Progressistas. Prestes a filiar o deputado Jair Bolsonaro, um dos líderes das pesquisas para a Presidência da República, o Partido Ecológico Nacional (PEN) quer se tornar Patriotas. Os também nanicos PTdoB e PSL devem mudar para Avante e Livres, respectivamente. E tem o próprio PMDB, que segundo o senador Romero Jucá (RR) deve voltar 38 anos no tempo e se reassumir como MDB.
Na avaliação de Barreto, existem três categorias para os partidos que buscam essas mudanças: os que estão alterando seu projeto de país e promovendo um reposicionamento ideológico; os que buscam fazer uma reacomodação de forças, como o DEM, que pode abandonar o nome atual para receber deputados de centro-esquerda; e outros que apenas estão focados em marketing político, uma estratégia de comunicação para evitar uma queda brusca nas urnas.
Atacado x varejo
Apesar de a norma não falar sobre restrição à atuação dos partidos no Congresso Nacional, a avaliação é que seja o início de uma tendência natural para a redução de partidos e, também, do número de bancadas, mesmo que a longo prazo. Isso deve ocorrer por fusões e mudanças partidárias ou pela constituição de federações, que atuariam unificadas. Com menos bancadas, diminui a diversidade de interesses a serem atendidos, o que facilitaria a construção de maiorias e acordos partidários.
“O Brasil é o único país com esse número de partidos. É impossível ter uma governabilidade sólida com esse número, que cria instabilidade. Todos os deputados que estão na Câmara hoje sabem como é inviável construir essa governabilidade com 28 partidos políticos”, defendeu Shéridan. “Você tem que achar um nível de representatividade que não comprometa a governabilidade. O problema hoje é que a nossa balança está pesando excessivamente para o lado da representatividade. E é uma representatividade que nem inclui todos os segmentos da sociedade” corrobora Barreto.
O cientista político acredita que o atual cenário de fragmentação favoreça também a abertura de “portas para negociações não republicanas”. O cálculo é simples: quanto mais pulverizado, maior é o “custo” de cada parlamentar na construção da base aliada. E o resultado, na avaliação dele, é “não apenas a corrupção, mas trocas de votos por nomeações, por exemplo, que são coisas complicadas, porque apesar de serem legais, têm um custo”, observa.
Falta acordo
Se a deputada Shéridan conseguiu algo próximo a um consenso para votar a cláusula de barreira, que agrada os partidos grandes – até porque diminui o número de bocas alimentadas pelo Fundo Partidário -, e atenuou a resistência ao fim das coligações proporcionais, abrindo a possibilidade de os partidos pequenos criarem federações, o mesmo não pode ser dito sobre as demais frentes de discussão.
A polêmica proposta que cria um outro fundo público exclusivo para as campanhas foi suavizada na Câmara com a retirada do trecho que o indexava ao percentual de 0,5% da Receita Corrente Líquida (RCL), o que daria cerca de 3,6 bilhões de reais no ano que vem. No entanto, não há acordo entre os parlamentares, que ainda temem o desgaste público de aprovar uma medida que vai onerar ainda mais o estado neste momento de crise. Diante disso, voltou a ganhar força a proposta de ressuscitar o financiamento empresarial de campanhas, proibido em 2015 pelo Supremo.
A movimentação foi tanta que levou o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), a procurar os ministros do STF para sondá-los a respeito de qual seria o posicionamento da Corte caso o Congresso voltasse a aprovar o sistema e ele eventualmente fosse contestado judicialmente outra vez. Nesse caso, a resistência é a Operação Lava Jato, que desnudou as relações entre políticos de diversos partidos e as empresas que foram grandes doadoras de campanhas nas últimas eleições, sendo que muitas destas aderiram à acordos de leniência e delação premiada, como a Odebrecht e a JBS.
Por fim, a última hipótese que ainda não mostrou ter chances de vingar é a encampada pelo senador Ronaldo Caiado (DEM-GO). O político defende o fim do horário partidário gratuito fora do período eleitoral, o que levaria a União à economizar cerca de 2 bilhões de reais, valor que poderia ser destinado às campanhas.
Sobre o sistema de votação, a principal proposta, o distritão (que faria com que os mais votados fossem eleitos, independente do desempenho de seus partidos) continua em discussão, seja como transição para o distrital misto ou não. A principal resistência é de partidos com alto número de votos em legenda, como é o caso do PT, que temem ser prejudicados.
Cada vez mais, a movimentação caminha para ser a reforma política possível, se houver alguma. Com a falência do sistema e o medo da depuração das urnas, cada partido busca a aprovação do que mais atenda às suas pretensões eleitorais. A grande questão agora é saber se os diferentes lados serão capazes de ceder para que haja a construção de um acordo. Se conseguirem se acertar a respeito da cláusula de desempenho e do fim das coligações, deputados e senadores podem estar abrindo um caminho para que os próximos acordos sejam mais fáceis.