Logo depois das eleições, representantes do MST e do PT se reuniram e acertaram um acordo. Pelo menos nos seis primeiros meses de governo, não haveria invasão de fazendas, manifestações ou qualquer coisa que pudesse gerar algum tipo de instabilidade. Em contrapartida, dirigentes do movimento seriam premiados com alguns cargos estratégicos. A trégua durou sessenta dias. No início de março, os sem-terra ocuparam três fazendas da empresa Suzano, na Bahia, lançando mão dos métodos e dos argumentos de sempre. A invasão tirou o presidente da República do sério: “Isso não tem cabimento. Mete a marreta nesse povo”, disse ele, diante de um grupo de auxiliares, entre eles, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro. Depois do desabafo, Lula avisou que iria chamar João Paulo Rodrigues, um dos líderes do MST, para uma reunião em Brasília: “Vou dizer pra ele o seguinte: ‘Cara, você ficou quatro anos que nem um gatinho, quietinho, sem miar. Agora, mal começou o nosso governo e vocês vêm com essa bandalheira…’ ”.
Ninguém ousou perguntar ao presidente o que exatamente ele quis dizer sobre meter a marreta “nesse povo”. Mas a mensagem que veio na sequência revela um desencontro entre Lula e alguns dirigentes do PT. O partido, como se sabe, nunca condenou a ação na Bahia com veemência. O ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, por exemplo, contemporizou ao ressaltar que a Suzano não havia cumprido um acordo pretérito. E a chefe da legenda, deputada Gleisi Hoffmann, preferiu o silêncio diante do ato que foi classificado pelo presidente — aliás, corretamente — como “bandalheira”. Para evitar desgastes ao governo, os sem-terra concordaram em deixar as fazendas sem resistir, tão logo a Justiça emitisse a ordem de reintegração de posse. Fizeram apenas duas exigências. A primeira é que a polícia simulasse um cerco no momento da desocupação para produzir imagens sugerindo que eles deixaram o local à força. A segunda condição foi que o governo cumprisse uma suposta promessa que havia sido feita e indicasse militantes do movimento para ocupar determinados cargos na administração federal. Só que esse novo pacto também não durou muito.
Dias depois, em Mato Grosso do Sul, cerca de 100 indígenas, com o apoio do MST, invadiram uma fazenda no município de Rio Brilhante, provocando uma confusão política ainda mais barulhenta. O alvo foi uma propriedade que pertence à família de um dirigente e militante histórico do PT. A reação da cúpula do partido dessa vez foi bem diferente. O primeiro a se pronunciar foi Zeca do PT, ex-governador, atual deputado estadual e amigo pessoal do presidente Lula. Num discurso irretocável, ele definiu a ação como uma barbaridade. “Não conte comigo essa gente que, sem nenhuma razão, invade propriedade produtiva gerando insegurança jurídica”, atacou o petista. “Trancaram o portão, ocuparam a sede da fazenda e proibiram a família de tirar de lá 7 000 sacas de soja que foram colhidas”, ressaltou o petista.
As reações desencontradas dos dirigentes do partido mostram uma curiosa mudança de comportamento, especialmente quando o conceito de “justiça social” no campo é aplicado em propriedades de companheiros. “Na vida e na política é preciso ter coerência. O fato da área estar na posse de um companheiro do PT não pode fazer com que mudemos de posição em defesa dos direitos dos indígenas de recuperar seu território”, fustigou Vladimir Ferreira, presidente do diretório estadual do partido. “Nosso presidente estadual, que não faz porcaria nenhuma, agora quer aproveitar esse episódio para aparecer bem na foto. Essa não é a verdadeira posição do PT”, rebateu José Raul das Neves Júnior, um dos donos da fazenda invadida, também dirigente do partido.
Os pais dele, José Raul das Neves e Hissae Matsunaka, contam que adquiriram a propriedade há mais de cinquenta anos. Segundo o casal, que conhece o presidente Lula e fez campanha para o PT, a família sempre manteve uma excelente relação com os sem-terra e os indígenas da região. A matriarca, revoltada, diz que pensa em abandonar tudo. “As terras valem 40 milhões. Se o governo pagar, a gente repassa para os indígenas e vai embora daqui”, disse ela. Já o patriarca alfinetou os petistas que defenderam os intrusos: “Nos quatro anos do governo Bolsonaro, tivemos ao menos um momento de paz no campo, sem invasões”.
A fazenda invadida é parte de uma área de 11 000 hectares que os indígenas reivindicam na região de Rio Brilhante. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entidade ligada à Igreja Católica, diz que a propriedade está dentro de um estudo antropológico ainda pendente de conclusão. Já o povo guarani-kaiowá garante que as terras pertenciam a seus ancestrais. “Nessas plantações existem restos de ocas e cemitérios indígenas”, afirma o cacique Farid Mariano Lima.
De acordo com relato dos funcionários da fazenda, os invasores ingressaram na propriedade empunhando armas que tinham até mira a laser, com o apoio logístico de carros carregados de suprimentos. Depois da ocupação, foram erguidas cercas e barricadas ao longo das vias de acesso à propriedade de 400 hectares. Ninguém entra nem sai de lá sem autorização. No sábado 18, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, visitou a área do conflito. Em nota, a pasta informou que o objetivo da viagem era “avaliar in loco a situação da retomada dos territórios Laranjeira Nhanderu”, declaração que acirrou ainda mais os ânimos na região.
O caso de Mato Grosso do Sul, além de revelar uma flagrante contradição entre o discurso e a prática dos dirigentes petistas, agregou alguns ingredientes ao cardápio de problemas que o governo vai acumulando nesse setor. O MST sempre foi considerado uma espécie de braço armado do PT. Em seus dois primeiros mandatos, Lula costumava usar sua ascendência sobre o movimento para conquistar a confiança, ganhar o apoio e tranquilizar os ruralistas que se sentiam ameaçados. “Pode deixar que eu tomo conta deles”, costumava repetir sempre aos interlocutores preocupados com as invasões de terra.
Certa vez, quando já tinha deixado o Planalto, chegou a dizer que, se necessário, poderia convocar “o seu exército” para defender o governo Dilma, então ameaçado pelo processo de impeachment. No último dia 15, a oposição conseguiu reunir assinaturas suficientes para criar a CPI do MST. A investigação conta com o apoio da Frente Parlamentar da Agropecuária, bancada que reúne 340 congressistas e defende a aprovação de leis que enquadrem as invasões de terras produtivas como crime de terrorismo. Feitiços sempre podem se voltar contra os feiticeiros.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834