Em 2018, Jair Bolsonaro reinou praticamente sozinho nas redes sociais. Sua campanha na arena digital foi tão bem-sucedida que implodiu um axioma eleitoral até então vigente segundo o qual, para conquistar a Presidência da República, um candidato teria necessariamente de contar com uma sólida aliança partidária e, assim, usufruir tempo de propaganda na TV e recursos financeiros em quantidades consideráveis. Empossado no Palácio do Planalto, Bolsonaro manteve a aposta nas redes sociais como estratégia para governar, arregimentar apoiadores, enfrentar opositores e pressionar as instituições. Foi por meio delas que ele e seus aliados organizaram, por exemplo, as manifestações realizadas em 7 de setembro, que tiveram uma considerável adesão popular. É também com a ajuda delas que o presidente espera conquistar um novo mandato. A tropa digital do ex-capitão ainda está muito à frente da de seus adversários. O problema para Bolsonaro é que diferentemente do pleito anterior — em que as redes sociais funcionaram como terra sem lei, onde quase tudo era permitido e quase nada punido — na próxima eleição a promessa é de fiscalização e de combate a práticas como fake news, em que os bolsonaristas são reconhecidamente especialistas.
Da direita à esquerda, passando pelo Poder Judiciário, há consenso de que as redes sociais estarão no centro do debate eleitoral em 2022. Dois julgamentos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concluídos na última quinta-feira, 28, são prova disso. Por unanimidade, o TSE decidiu livrar da cassação a chapa formada por Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, que foi denunciada por uso de robôs e disparo em massa de mensagens pelo WhatsApp em 2018. Prevaleceu entre os ministros da Corte o entendimento de que faltaram provas da gravidade dos fatos narrados pela campanha do petista Fernando Haddad. Além disso, prevaleceu a percepção de que a maior parte das informações do processo tratava de atos ocorridos durante a Presidência de Bolsonaro — ou seja, após a eleição — e se relacionava a ações de apoiadores do presidente, e não dele propriamente. “A que ponto chegou o TSE? Tem certas coisas que nem tem que colocar em pauta, tem que arquivar”, disse Bolsonaro em entrevista recente, ao comentar a iminente absolvição. O presidente se atentou ao resultado geral, mas não aos recados endereçados a ele durante o julgamento.
Apesar de rechaçar a punição, os ministros do TSE ressaltaram que o uso de redes sociais e de aplicativos de mensagens para promover disparos em massa de desinformação e mentiras pode configurar uso indevido de meios de comunicação e abuso de poder econômico. As punições previstas incluem cassação da chapa e declaração de inelegibilidade. “A Justiça é cega, mas não é tola. Não podemos criar um precedente avestruz. Todo mundo sabe o que ocorreu, todo mundo sabe o mecanismo utilizado nas eleições e depois”, disse o ministro Alexandre de Moraes, que vai presidir o TSE na próxima campanha presidencial. “É uma ingenuidade achar que a rede social não é meio de comunicação social. É o mais importante veículo de comunicação social no mundo. Vai ser combatido nas eleições de 2022. Se houver repetição do que foi feito em 2018, o registro será cassado e as pessoas irão para a cadeia”, acrescentou. Em outro julgamento, o tribunal reforçou o alerta ao presidente. Por 6 a 1, o TSE decidiu cassar o mandato do deputado estadual Fernando Francischini (PSL-PR) porque ele, à época deputado federal, fez uma live no dia do primeiro turno, em 2018, para denunciar que duas urnas estavam fraudadas e não aceitavam votos em Bolsonaro. Segundo o Ministério Público, a acusação era falsa e configura uso indevido de meios de comunicação e abuso de poder político.
Bolsonaro, como se sabe, fez uma live recentemente em que ecoou seu aliado Francischini, contestou a segurança das urnas eletrônicas e lançou mão de fake news para dizer que é possível fraudá-las. Não só não apresentou uma prova sequer do que afirmou como deu munição para o TSE avançar na reação a ele. Por iniciativa do então corregedor-geral eleitoral, Luis Felipe Salomão, o caso da live foi incluído num inquérito administrativo aberto contra o presidente que apura uma série de supostas irregularidades. A ideia é enxertá-lo com provas de que Bolsonaro está atuando ilegalmente em uma pré-campanha eleitoral. Entre os ministros do TSE, há a avaliação de que o inquérito administrativo pode ser demolidor porque reúne evidências com potencial para turbinar o pedido de rejeição de seu registro como candidato à reeleição. Uma delas é o uso da TV Brasil, uma emissora pública, para também transmitir a live na qual Bolsonaro atacou a segurança das urnas eletrônicas. Essa investigação pode dar em nada, mas serve, por enquanto, como mais um instrumento de pressão sobre o mandatário.
Historicamente, o TSE não costuma punir presidentes da República. Já faz parte do anedotário político a versão de que o tribunal absolveu a chapa Dilma Rousseff e Michel Temer por excesso de provas. No caso de Bolsonaro, está claro que há uma ofensiva para tentar conter abusos dele e de seus apoiadores nas redes. Em agosto, Salomão determinou a desmonetização de canais bolsonaristas em plataformas digitais como YouTube, Twitter, Instagram e Facebook. A lógica é simples: cortando o duto financeiro, espera-se, no mínimo, redução da atividade da indústria de fake news. Fora do âmbito da Justiça Eleitoral, outras medidas são tomadas para punir aliados do presidente que têm forte influência no universo digital e incorrem em ilegalidades. Muitos deles passaram a ser investigados formalmente nos inquéritos dos atos antidemocráticos e das milícias digitais no Supremo Tribunal Federal (STF). Esses inquéritos têm como relator o ministro Alexandre de Moraes.
Recentemente, Moraes determinou as prisões do blogueiro Oswaldo Eustáquio e do caminhoneiro conhecido como Zé Trovão, ambos bolsonaristas, por supostamente incitarem atos violentos. Eustáquio já teve a prisão revogada, enquanto Zé Trovão se entregou à polícia depois de ficar quase dois meses foragido. Moraes também ordenou a prisão do blogueiro Allan dos Santos, que já teve canais banidos em plataformas como Twitter e YouTube e é investigado no inquérito das milícias digitais. Morando nos Estados Unidos, Allan dos Santos, muito próximo ao clã Bolsonaro, ainda não se apresentou às autoridades. Nenhuma dessas punições afeta o presidente pessoalmente, mas todas atrapalham a rede de informações — verdadeiras ou falsas — que ele usa para conquistar eleitores e enfrentar adversários. Suas hostes digitais estão sendo combatidas em diversas frentes e, na semana passada, o cerco chegou ao próprio presidente. O Facebook e o Instagram tiraram do ar uma live de Bolsonaro, transmitida na quinta-feira 21, em que ele disseminava mais uma mentira: a de que pessoas que tomaram vacina contra a Covid-19 podem desenvolver outra doença, a aids. Mais um delírio do presidente.
Com a decisão, Bolsonaro passou a fazer parte de um seleto grupo de líderes mundiais que tiveram conteúdo removido por divulgar notícias falsas ou incitar a violência. Entre eles, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, com quem o ex-capitão compartilha o negacionismo, a tentação autoritária e a tentativa de intimidar as instituições. Condenada por profissionais de saúde, a falsa associação entre a vacina contra o novo coronavírus e aids foi incluída de última hora no relatório final da CPI da Pandemia do Senado, aprovado na terça-feira 26. O texto pede o indiciamento de Bolsonaro por nove crimes, decorrentes de atitudes como omissão na compra de vacinas e defesa do tratamento precoce, comprovadamente ineficaz. Bolsonaro também foi apontado como integrante de um núcleo de disseminação de fake news. Parece um ponto de menor importância, mas dialoga com as frentes abertas no TSE. Os bolsonaristas sabem da ofensiva em curso e já estão agindo para detê-la. Uma de suas estratégias é alegar que o que está em jogo é a liberdade de expressão, que não poderia ser prejudicada em razão de disputas políticas.
No Twitter, o vereador Carlos Bolsonaro, general da tropa digital do pai, perguntou, referindo-se a Lula: “Já pediram o bloqueio dos canais de comunicação do ex-presidiário?”. Outros filhos do presidente trabalham há bastante tempo para contornar as restrições impostas pelos gigantes do setor. O senador Flávio Bolsonaro tem estimulado seguidores a aderirem ao Telegram, aplicativo de troca de mensagens adotado pela extrema direita mundial e menos rigoroso com seu conteúdo compartilhado. Já o deputado Eduardo Bolsonaro faz campanha para que haja adesão ao Gettr, rede social criada por um ex-assessor de Trump e que reúne blogueiros de direita. Mas mesmo com esses movimentos, tanto o presidente como seus filhos reconhecem que não terão em 2022 a larga vantagem que tiveram na internet em 2018.
Em paralelo, e reativando velhas estratégias, Bolsonaro negocia a filiação a uma legenda de médio a grande porte, como PP ou PL, e planeja costurar uma aliança partidária robusta para a próxima sucessão presidencial. Seu objetivo é claro: ter a maior fatia de tempo de televisão e de recursos orçamentários entre os candidatos à Presidência. Se a situação se complicar no universo digital, o que parece inequívoco, o presidente quer ter a certeza de que terá nas mãos os meios que antes eram considerados essenciais para garantir a vitória de qualquer candidato.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762