Há duas semanas, VEJA mostrou que o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) foi artífice e beneficiário de um esquema de rachadinha que envolveu seis ex-funcionárias do gabinete do parlamentar — todas mulheres, pobres e moradoras da periferia do Distrito Federal. Elas emprestavam o nome e o CPF, abriam conta no banco e, contratadas como assessoras, repassavam o cartão e a senha a pessoas da confiança do senador. Os salários variavam entre 4 000 e 14 000 reais, mas elas ficavam com uma parcela minúscula desse dinheiro. Entre vencimentos, benefícios, férias, décimo terceiro e verbas indenizatórias, estima-se que a fraude tenha rendido aproximadamente 2 milhões de reais durante o tempo em que durou, entre janeiro de 2016 a março deste ano. Em entrevista, Alcolumbre não negou a existência do esquema. Disse apenas que o desconhecia, já que a parte administrativa do gabinete, segundo ele, ficava sob a responsabilidade de outra pessoa.
Essa outra pessoa chama-se Paulo Augusto de Araújo Boudens. Ele é advogado, economista e braço direito de Davi Alcolumbre desde a época em que o congressista chegou a Brasília para exercer o primeiro mandato como deputado federal. As funcionárias fantasmas, de fato, disseram a VEJA que os detalhes sobre a operacionalização do golpe eram tratados com Paulo Boudens. Ele quem conduzia as entrevistas, estabelecia quanto cada uma iria receber e a quem deveriam ser entregues os cartões e as senhas bancárias. Alcolumbre, porém, sabia de tudo. Uma das ex-funcionárias, a diarista Marina Ramos Brito, revelou que conversou pessoalmente com o senador antes de ser contratada. Na ocasião, o parlamentar resumiu como funcionava o esquema: “Eu te ajudo e você me ajuda”. Marina foi admitida como assessora parlamentar, seu salário passava de 14 000 reais, mas ela só ficava com 1 350 reais. O resto do dinheiro ajudava o senador.
Alcolumbre e Boudens são parceiros de longa data. Em 2019, quando o parlamentar assumiu a presidência do Congresso, não era incomum encontrar o advogado despachando com parlamentares, devidamente autorizado pelo senador. Durante os dezessete anos em que gerenciou o gabinete, nada acontecia sem passar por ele. E tudo o que ele fazia — rigorosamente tudo —, especialmente a parte administrativa, era submetido ao crivo do chefe. Sugerir, portanto, que uma fraude dessa dimensão, que durou mais de cinco anos e movimentou pelo menos dois milhões de reais, pudesse acontecer sem que Alcolumbre soubesse é, para dizer o mínimo, um despropósito. A relação entre os dois, aliás, é de extrema confiança. Além de assessor parlamentar, Boudens é sócio de um escritório de advocacia no centro da capital. O advogado atua na defesa de Alcolumbre em pelo menos uma dezena de processos, em Brasília e no Amapá — uma prestação de serviço na linha do “eu te ajudo e você me ajuda”.
Aliás, em 2019, quando presidia o Congresso, Alcolumbre tentou, sem sucesso, aprovar uma medida para ajudar o amigo assessor. Por baixo dos panos, queria transformá-lo em funcionário efetivo do Senado, sem concurso, na base da canetada, com salário superior a 27 000 reais — o que é totalmente ilegal. Na época, a tramoia foi denunciada pelo site Metropoles e imediatamente abortada. No caso da rachadinha, Boudens aparece em vários relatos como uma espécie de gerente do esquema. No depoimento a VEJA, Marina contou que o advogado estava presente no momento em que ela conversou com o senador sobre os detalhes da contratação. As outras ex-funcionárias disseram que trataram da rachadinha diretamente com o chefe de gabinete.
A dona de casa Lilian Alves Pereira contou que foi várias vezes à agência da Caixa Econômica no Senado. Contratada como assessora júnior, chegou a ter um salário bruto de 11 000 reais, mas nunca trabalhou. Ela abriu uma conta no banco e deixou o cartão e a senha aos cuidados do gabinete. VEJA teve acesso aos extratos bancários que mostram a dinâmica da fraude. O salário de Lilian do mês de julho do ano passado, por exemplo, foi creditado no dia 21 daquele mês. Logo depois, a conta foi praticamente zerada. Alguém foi ao caixa eletrônico e fez cinco saques. Dos 7 304 reais depositados, sobraram apenas 4,49. “Uma pessoa tirava o dinheiro e dava minha parte, 800 reais, na mão”, diz a dona de casa, que, depois, abriu uma segunda conta em Luziânia (GO), a cidade onde mora, e passou a receber a gratificação via depósito. Essa logística, segundo ela, foi toda realizada sob orientação de Paulo Boudens.
O mesmo procedimento foi seguido pela dona de casa Adriana Souza de Almeida e pela estudante Erica Almeida Castro. Contratada entre maio de 2017 e fevereiro de 2021, a dona de casa recebia 800 reais para emprestar seu nome ao esquema. Ela conta que entregou o cartão da conta, a senha e o crachá funcional nas mãos de Paulo Boudens. Já a estudante, cujos vencimentos e gratificações somavam mais de 14 000 reais, lembra que sua contratação foi conduzida pelo chefe de gabinete. Os extratos bancários das duas ex-funcionárias fantasmas também mostram a sequência de saques que ocorria logo depois do pagamento ser creditado — todos realizados a partir de um caixa eletrônico que fica a 200 metros do gabinete de Davi Alcolumbre. É, nos mínimos detalhes, um caso muito parecido com um que envolveu o senador Flávio Bolsonaro, quando ele era deputado estadual no Rio de Janeiro. Segundo o Ministério Público, os funcionários do gabinete devolviam parte dos salários. A coleta da rachadinha era organizada pelo chefe de gabinete do parlamentar, o ex-policial Fabrício Queiroz. Boudens, portanto, é o Queiroz de Alcolumbre.
“Alcolumbre não pode alegar desconhecimento do que se passa em seu próprio gabinete — ainda mais considerando-se que as funcionárias ‘fantasmas’ nunca compareceram naquele recinto”, disse o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um dos poucos a cobrar diariamente uma apuração rigorosa do caso. A bancada do Podemos, formada por nove senadores, defendeu o afastamento imediato de Alcolumbre da presidência da Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Já o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (MG), pré-candidato à presidência da República pelo PSD e até ontem colega de partido de Alcolumbre, silenciou — e, ao que parece, pretende permanecer assim, inerte, até que o caso caia no esquecimento, mesmo comportamento adotado pelo presidente do Conselho de Ética e Decoro, senador Jayme Campos, também do DEM. Na terça-feira 9, soube-se que a Polícia Legislativa abriu uma investigação interna e intimou para depor as seis ex-funcionárias. Para Alessandro Vieira, a investigação interna não tem valor legal.
Procurado por VEJA, Paulo Boudens não quis se pronunciar. Limitou-se a divulgar uma nota em que classifica como “inverídicas as informações prestadas pelas ex-servidoras à revista”. A respeito da insinuação do senador atribuindo a ele, Boudens, a responsabilidade pela contratação dos fantasmas, nada a declarar. Por fim, ainda poupou o chefe: “O senador Davi Alcolumbre, em nenhuma ocasião, manteve contato com as ex-assessoras mencionadas na matéria”. Combinadas entre si, as versões do senador e de seu chefe de gabinete produzem a seguinte situação: houve a contratação dos fantasmas, mas o senador não sabia de nada. Houve a rachadinha, mas é impossível que o dinheiro tenha chegado ao bolso do senador, pelo simples fato de que ele nunca teve contato com as mulheres. Dedução elementar: vai sobrar para Paulo Boudens.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764