Previsto para fazer parte do ritual de despedidas de João Doria do governo de São Paulo e marcar o início de sua nova caminhada na tentativa de chegar ao Palácio do Planalto como presidenciável escolhido nas prévias do PSDB, o jantar ocorrido na última quarta, 30, na mansão do empresário Marcos Arbaitman, no Jardim Europa, um dos bairros mais valorizados da capital paulista, contou com um discurso emocionado do homenageado. Citando no começo de suas palavras o anfitrião, que é uma das pessoas mais próximas ao governador, Doria falou sobre atitudes de grandeza na política e a expectativa do que pode acontecer nos próximos dias de positivo e de bom para o Brasil. “Esse respeito não parte do pressuposto de que tem de ser eu”, disse, sem citar explicitamente a briga dele com outros candidatos para se tornar o nome de consenso de PSDB, MDB e União Brasil, os partidos que trabalham nos bastidores para marchar juntos com um candidato capaz de representar a terceira via. “Essa grandeza, a religião nos ensina… Tenha o espírito elevado e exercite o diálogo no limite do possível”, completou.
Num primeiro momento, as palavras não soaram como novidade para o grupo de convidados, que incluiu quase todos os secretários de Doria. Afinal, em ocasiões anteriores, ele já havia dito publicamente que estaria disposto a abrir mão de encabeçar a chapa da terceira via em nome da união do centro contra a polarização entre Lula e Bolsonaro. Poucos, é verdade, levavam a sério essas palavras, dada a obstinação com que o governador se entrega ao seu projeto presidencial. Esse tipo de discurso sempre foi encarado como um antídoto às críticas recorrentes de adversários de que ele sempre põe seus interesses pessoais acima de qualquer acordo. Foi o mesmo sentimento que o discurso causou na maior parte dos presentes ao evento na casa de Arbaitman. O que nenhum deles sabia é que, desta vez, as palavras eram para valer. Horas antes, num gesto surpreendente, Doria tinha comunicado a um dos seus principais nomes de confiança sua desistência de concorrer ao Palácio do Planalto. Além disso, contou que não mais renunciaria ao governo de São Paulo para se manter no cargo até o fim do mandato, em dezembro. A falta de união do PSDB em torno da sua candidatura presidencial, inegavelmente, era o principal motivo para a mudança brusca de direção.
Num rápido e tenso encontro no Palácio dos Bandeirantes, Doria comunicou os novos planos ao vice Rodrigo Garcia, que não gostou nada da história. Oriundo do DEM, Garcia assinou a ficha de filiação ao PSDB para se lançar o candidato à sucessão de Doria. Preterido por essa escolha do governador, Geraldo Alckmin, que alimentava o sonho de voltar ao Palácio dos Bandeirantes, bateu asas do ninho tucano e, recentemente, acertou o ingresso no PSB para se tornar o vice da chapa presidencial de Lula. Pouquíssimos imaginavam que o governador seria capaz de romper o pacto com Garcia, ainda mais pelo fato de que um depende do outro no pleito deste ano. Pouco conhecido do eleitorado, o vice precisa se amparar no bom saldo de realizações da atual gestão e contar com a máquina do governo para decolar na campanha. Por sua vez, o bom desempenho local de Garcia ajudaria Doria a diminuir a rejeição dele junto ao eleitorado, uma das mais altas entre os presidenciáveis.
Na conversa entre os dois ocorrida por volta das 17 horas da última quarta, na sala do governador, Doria comunicou que continuaria apoiando Garcia como seu sucessor. O diálogo durou cerca de vinte minutos e terminou com Garcia deixando o local bastante contrariado. Apesar de a convivência ter sido diplomática entre os dois nos últimos anos no Palácio dos Bandeirantes, a diferença de estilos sempre foi enorme. Mais recentemente, em meio à agitação com a proximidade das eleições, enquanto o chefe ficava cada vez mais isolado politicamente dentro e fora do PSDB, o vice construiu um formidável arco de alianças em São Paulo, com o apoio de mais de 500 prefeitos e acordos formados junto ao MDB, União Brasil, Cidadania e Solidariedade. Garcia contava ainda com um tempo para se distanciar da imagem de Doria, de forma a não ter que carregar na campanha a alta rejeição do governador. Quando estivesse fortalecido nas pesquisas de São Paulo, Garcia prometia voltar a se reaproximar de Doria, ajudando na eleição nacional.
Entre a madrugada de quarta e a manhã de quinta houve um esforço para reverter a situação, que se revelou bem-sucedido. Em conversa com o presidente do PSDB, Bruno Araújo, Doria pediu uma declaração pública de apoio à sua pretensão presidencial e foi atendido. “As prévias serão respeitadas pelo partido”, dizia a nota. No início da tarde de quinta, Doria voltou a se reunir com Garcia e acertou os ponteiros. Horas depois, no Palácio dos Bandeirantes, o governador confirmou publicamente a manutenção do plano original. “Sim, serei candidato à Presidência da República pelo PSDB, o PSDB (enfatizou), o nosso partido. Vamos vencer o populismo, a maldade e a corrupção”, discursou, em um auditório com mais de 1 500 pessoas. Até esse momento, tucanos paulistas insatisfeitos com as idas e vindas de Doria chegaram a mandar recados ameaçando-o de impeachment caso mantivesse a decisão de não deixar o cargo (só não ficou claro por qual motivo o governador seria obrigado a sair).
Vários fatores pesaram na surpreendente movimentação de Doria, a começar pela encruzilhada política. Depois da vitória nas prévias de seu partido para a disputa presidencial, ele não conseguiu apaziguar o ninho e, nos últimos dias, cresceu enormemente a possibilidade de ser descartado por um nome de consenso entre os dirigentes de PSDB, MDB e União Brasil. Mesmo derrotado por Doria na disputa interna, o governador gaúcho Eduardo Leite nunca abandou o sonho presidencial e, após flertar seriamente com o PSD de Gilberto Kassab, acabou sendo enquadrado a permanecer no PSDB pelo senador Tasso Jereissati e pelo deputado federal Aécio Neves, dois dos maiores adversários de Doria. Nesse contexto, a renúncia de Leite ao cargo foi interpretada como mais um sinal de que ganha corpo o movimento para tirar o governador paulista da disputa ao Planalto. Caso realmente os tucanos decidam rasgar o resultado das prévias, que consumiram 6 milhões de reais em dinheiro público, via Fundo Partidário, a imagem da legenda, já bastante desgastada, poderia chegar ao fundo do poço.
Outro obstáculo que pesou na ameaça de Doria de recolher as asas para o tão sonhado voo mais alto é o próprio Doria. A despeito de sua capacidade de gestão acima da média e da carreira pública até aqui extremamente bem-sucedida, ele continua sendo um estranho no ninho entre seus pares, que enxergam nele um comportamento artificial, uma vaidade exacerbada e uma dificuldade enorme de entender e seguir as mais básicas regras do bom catecismo político. A visão do eleitorado hoje não é muito diferente, como demonstram os decepcionantes resultados dele nas projeções de votos dos institutos especializados. Uma pesquisa qualitativa que circulou recentemente entre os tucanos jogou um novo balde de água fria nas possibilidades de Doria virar esse jogo. Segundo o levantamento, até o maior ativo do governador, o eficiente e corajoso trabalho para iniciar no país a vacinação contra a Covid-19, é motivo de críticas. Para muitas pessoas, o exagero de Doria em faturar politicamente com a CoronaVac, contrapondo-se ao negacionismo do presidente Jair Bolsonaro, foi um exemplo que comprova como os políticos agem sempre movidos por seus interesses — no caso, a vontade de Doria em suceder ao próprio Bolsonaro no Palácio do Planalto. A pesquisa apontou ainda a enorme dificuldade para a candidatura roubar votos dos favoritos Lula e Bolsonaro, agravada pelo fato de ele ainda disputar o eleitorado com outros nomes da terceira via, em particular o de Sergio Moro — que resolveu se filiar ao União Brasil, mas decidiu abrir mão da campanha presidencial nesse momento, conforme nota divulgada por ele.
Mesmo com tantas dificuldades, Doria acha perfeitamente possível reverter a situação. Só que, inegavelmente, sua movimentação recente criou ainda mais tumulto na já bastante atribulada terceira via. Além de Doria e Moro, estão na disputa Eduardo Leite, a senadora Simone Tebet, pré-candidata do MDB, Ciro Gomes e até o deputado Federal André Janones, do Avante. Por enquanto, só um fator une essa heterogênea turma: todos eles possuem baixas intenções de votos nas pesquisas. Mesmo com essa realidade, Doria acredita que, à medida que a campanha avançar, alguns desses personagens sairão do páreo e sua eficiente gestão, além da atuação durante a pandemia, será reconhecida pelos brasileiros. É claro que as circunstâncias confusas do lançamento de sua candidatura não ajudam muito, assim como o desgaste que isso provocou na sua relação com Rodrigo Garcia.
Empresário bem-sucedido na iniciativa privada antes de decidir entrar na política (veio literalmente de baixo, trabalhando até de office-boy na juventude no período de graves problemas familiares), Doria nunca se sentiu totalmente à vontade nesse meio, mas sempre se jactou de sua capacidade de comunicação e de ser um craque em marketing, atributos que considera terem ajudado decisivamente em sua trajetória pública. Para um político conhecido por seu comportamento extremamente metódico, as recentes mudanças bruscas de rumo só podem ser explicadas por alguém que, isolado e sob intensa pressão, teve como única alternativa de sobrevivência a arriscada tática de incendiar de vez o ninho tucano, chamuscando de quebra o tortuoso caminho da terceira via. Aparentemente, se nenhuma novidade surgir, ele entrou de vez no páreo. Mas ainda falta muito para que Doria, ou algum outro nome alternativo, consiga avançar a ponto de ameaçar os favoritos Lula e Bolsonaro. E o relógio eleitoral é cruel para quem busca espaço: restam apenas seis meses para o pleito.
Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783