Desde o início do processo de cassação de Sergio Moro, por abuso de poder econômico durante a última campanha, a esmagadora maioria dos poderosos em Brasília dava como certo que isso representaria o início do fim na breve e errática carreira do ex-juiz na política. O voto do relator na primeira sessão do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná que abriu o julgamento na última segunda, 1, no entanto, foi favorável ao senador. Na bolsa de apostas, começou a crescer a impressão de que ele possa sair vencedor nessa instância (o resultado deve ser divulgado na semana que vem). Mas a guerra está longe do fim. Caso realmente triunfe nesse primeiro round, a capacidade de resistência do herói da Lava-Jato será submetida a outros desafios ainda maiores no horizonte.
Mesmo uma eventual vitória no TRE não poderá ser comemorada muito tempo. No caso de um revés no Paraná, acusação, defesa e Ministério Público devem recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral, em Brasília. Assim, Moro pode repetir o roteiro da derrocada de seu escudeiro fiel dos tempos da Lava-Jato, o ex-deputado federal Deltan Dallagnol — que foi absolvido por unanimidade no Paraná e, depois, condenado, também por unanimidade, em um julgamento de menos de um minuto no TSE.
A denúncia que deu origem ao processo de cassação se refere às campanhas de Moro em 2022 — após figurar por apenas quatro meses como presidenciável do Podemos, o ex-juiz migrou para o União Brasil para concorrer ao Senado. PT e PL acusam o ex-juiz de abuso de poder econômico por ter gasto 5 milhões de reais entre o período do Podemos e o início da corrida ao Senado pelo União. Acusação e Ministério Público Eleitoral dizem que ele se beneficiou da visibilidade de uma campanha para presidente para, depois, disputar uma cadeira no Congresso. Segundo essa tese, Moro teria ultrapassado o teto de gastos de 3,5 milhões de reais estipulado para uma campanha ao Senado pelo Paraná.
Não é um problema pequeno para Moro, pois as Cortes eleitorais tendem a ser duras com gastos exorbitantes que “desequilibram” as disputas. A defesa do senador não nega a existência de gastos, mas questiona a conta feita pela acusação, argumentando que ela soma indevidamente duas pré-campanhas (Presidência e Senado) e uma campanha a senador (que se iniciou no União Brasil). Segundo os advogados de Moro, teria de ser considerado apenas o gasto de 141 000 reais, feito na pré-campanha ao Senado.
Há uma alta expectativa por parte da acusação de conseguir equiparar o caso de Moro ao da ex-senadora Selma Arruda, a “Moro de saias”, juíza aposentada eleita pelo Mato Grosso em 2018 com a bandeira do combate à corrupção. Ela foi cassada, segundo decisões da Corte do seu estado e também do TSE, por abuso de poder econômico na pré-campanha. A Justiça entendeu que ela teve gastos estratosféricos que, inclusive, foram mais altos que os da campanha oficial. Tanto a acusação quanto o desembargador José Rodrigo Sade, que abriu a divergência no julgamento de Moro no TRE na última quarta, 3, empatando a votação em 1 a 1, são categóricos em cravar a similitude dos casos.
Do outro lado, o relator, Luciano Carrasco Falavinha Souza, mal mencionou a “Moro de saias” e igualou o caso de Moro ao de outros políticos: o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), e o deputado federal André Janones (Avante) — ambos começaram a pré-campanha como pretendentes à Presidência e depois se elegeram para outros cargos. Nenhum dos dois, de fato, teve problemas por isso. A falta de um consenso sobre essa discussão jurídica poderia favorecer Moro no TRE e nas instâncias superiores. Afinal de contas, a falta de regras na contabilização de gastos poderia atingir outros candidatos, provocando o efeito “o Moro de hoje é você amanhã”.
A questão é que há muita pressão política em torno do caso — e, dada a falta de popularidade de Moro nesse meio, isso pode ser determinante para a condenação. Ela representaria uma grande ironia para o ex-juiz, que é acusado de pesar sua caneta nas sentenças da Lava-Jato com objetivos políticos próprios. Se o debate chegar ao TSE, deverá ser apreciado por lá no segundo semestre, quando a Corte estará sob o comando do ministro Nunes Marques, do STF. Ele foi indicado para o Supremo por Jair Bolsonaro e, em tese, seria simpático a Moro, que se reaproximou do capitão. Só que Nunes Marques tem feito nos últimos tempos gestos de aproximação a Lula. Em caso de derrota no TSE, restaria ao senador tentar a sorte num ambiente ainda mais hostil, o STF, onde há inimigos como Gilmar Mendes.
Nos bastidores do mundo político, já há uma movimentação grande pela vaga de senador do Paraná, prevendo a cassação de Moro. O PL tem dois nomes fortes: a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, que já apareceu em pesquisas eleitorais liderando as intenções de voto no estado, e o ex-deputado federal Paulo Martins, vencido por Moro em 2022 por uma ligeira diferença de votos. Outra cotada para a vaga é justamente a mulher do ex-juiz, a deputada Rosângela Moro (União Brasil-SP), que mudou seu domicílio eleitoral para Curitiba há pouco mais de um mês — ato que está sendo questionado pelo PT na Justiça.
Mesmo que vença essa difícil batalha e evite a cassação de seu mandato, os problemas de Moro com a Justiça estão longe de terminar. No mesmo dia em que começou a ser julgado pelo TSE, chegou às mãos dos ministros do Conselho Nacional de Justiça o relatório final da correição feita na 13ª Vara Federal de Curitiba, motivo de uma reclamação disciplinar a que o ex-juiz responde no órgão. O corregedor Luis Felipe Salomão liberou o processo para julgamento e os ministros estão construindo seus votos a partir do teor desse documento com o inventário de irregularidades. Além disso, na decisão que abriu o processo, Salomão já deixou claro que Moro pode ser enquadrado na mesma jurisprudência que cassou Dallagnol.
Quando deixou a magistratura para ser ministro de Jair Bolsonaro, ele estava com 56 procedimentos administrativos abertos, que poderiam ou não virar processos disciplinares. Enquanto isso, no STF, o ministro Dias Toffoli, que vem fazendo críticas pesadas à Lava-Jato, tem em seu gabinete a relatoria de um inquérito que investiga Moro por supostas falcatruas no acordo de colaboração premiada feito por Tony Garcia em 2004. O delator diz que foi obrigado pelo então juiz a espionar membros do Judiciário e pessoas de fora do seu processo, em nome dos benefícios prometidos no acordo.
A situação é mesmo muito adversa para quem já teve poder para colocar Lula atrás das grades e foi citado em 2016 pela Times como uma das 100 pessoas mais importantes do mundo. Os tempos de glória da Lava-Jato ficaram manchados para sempre com as revelações a respeito dos bastidores da operação. Na sequência, o STF passou a revisar as principais decisões da 13ª Vara. Apesar disso, ainda contando com um saldo razoável de popularidade, o ex-juiz implacável com políticos resolveu abraçar de vez a política. Até aqui, no entanto, o desempenho é tímido. No primeiro ano de Senado, nenhum dos oito projetos que apresentou foi à frente.
Moro é fã declarado da operação italiana Mãos Limpas, que prendeu nos anos 90 políticos e empresários. Protagonista da força-tarefa do país europeu, o ex-promotor italiano Antonio Di Pietro caiu em desgraça depois de algum tempo. Com muitos processos nas costas ocasionados pela sua condução duvidosa da operação, ele acreditou que teria mais voz se trocasse de lado do balcão. No mundo da política, Di Pietro foi ministro do Trabalho do sucessor de Berlusconi durante seis meses, fundou um partido, foi eleito senador e depois deputado, mas perdeu a expressividade até cair na irrelevância. Moro luta agora para não repetir a mesma trajetória de ascensão e queda.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2024, edição nº 2887