Boa resolução de ano-novo, para os jornalistas de Brasília, seria não mais comparecer às performances matinais do presidente Bolsonaro em frente ao Palácio da Alvorada. Na comédia presidencial então encenada, a eles é reservado o papel de vilões, duplicados em risíveis patetas, irrecuperáveis hipócritas e desmoralizados mentirosos. “Você tem uma cara de homossexual terrível. Nem por isso eu te acuso de ser homossexual”, disse Bolsonaro, em dezembro, a um repórter que ousara perguntar sobre seu filho Flávio. Na mesma ocasião, à pergunta “O senhor ainda pretende mudar a embaixada de Israel?”, saiu-se com: “Você pretende se casar comigo um dia?”. E insistiu: “Não seja preconceituoso! Você não gosta de loiro de olhos azuis? Isso é homofobia, vou te processar por homofobia. Não admito homofobia. Você pretende se casar comigo? Responde!”. O nonsense, uma das variantes da comédia bolsonarista, apimentava-se da característica (e sintomática) insistência no tema da homossexualidade.O bom jornalismo exige vigilância contínua sobre os poderosos, e a reportagem dos principais órgãos da imprensa mantém marcação cerrada sobre os movimentos das autoridades, a começar do presidente da República. Não seria o caso, porém, quando o jornalista sabe que estará lá para servir de escada aos vitupérios da autoridade. “Vocês são uma espécie em extinção”, disse Bolsonaro aos repórteres, em ocasião mais recente. “Cada vez mais gente não confia em vocês. Acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama.” A pergunta que provocou tamanha explosão foi: “Qual reforma virá primeiro, a tributária ou a administrativa?”. Os fãs do presidente, cuja presença na ocasião é imprescindível, ululam de satisfação. Entre risotas de escárnio, ouve-se uma voz feminina: “Eles não sabem nem fazer perguntas”.A encenação sustenta-se em três pés: Bolsonaro, os jornalistas e os fãs. Um que falte, e desabará. A repórter Marcela Mattos explicou, em texto no site de VEJA, como funciona o ritual. A hora é alguma coisa entre 7 e 8h30, quando Bolsonaro deixa o Alvorada rumo ao Palácio do Planalto. Primeiro os auxiliares checam se há gente aglomerada junto ao portão. Se há, um carro dirige-se ao local, levando seguranças que, com cavaletes, montam um cercadinho e passam a selecionar as pessoas dignas de ali ingressar. É evidente que será barrado um ou outro que apareça com camiseta de protesto. Bem-vindas são as roupas verde-amarelas e as que ostentam slogans bolsonaristas: “Meu partido é o Brasil”, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Bolsas e mochilas passam pela esteira de raio X do palácio.Os fãs podem ser turistas em visita à capital ou gente de Brasília mesmo, alguns com currículos a entregar ou pedidos a fazer. Tudo pronto, com os fãs dispostos no cercadinho e os jornalistas, na expectativa do inevitável padecimento, um pouco mais distantes, chega o carro do presidente. Os fãs se exaltam, gritam “mito”. Ele desce do carro e, como no circo, quando a plateia já se abanca na fila do gargarejo, o palhaço protagonista já ocupa o centro do picadeiro e o palhaço coadjuvante, ou escada, se posiciona a alguns metros de distância, começa a função.Bolsonaro opera em ambiente físico e psicológico protegido. Seguranças ocupam posições ao seu lado e atrás, enquanto o amparo emocional fica por conta dos fãs, com seus coros de aprovação entusiástica ou, quando necessário, de intimidação dos jornalistas. Vez ou outra de tais embates sai uma notícia relevante. Num deles Bolsonaro anunciou que Joaquim Levy estava “de cabeça a prêmio”, precipitando a saída do então presidente do BNDES. Em outro, quando um fã afirmou estar disposto a entrar no PSL, desaconselhou-o: “Esquece o PSL, o Bivar está queimado pra caramba” — e desencadeou a crise que implodiu o partido pelo qual se elegera.O código de conduta profissional do jornalista reza que não se pode perder as oportunidades de notícia. Essa é a regra. As manhãs do Alvorada deveriam, porém, ser consideradas uma exceção; se não é naquele ambiente, em algum outro a mesma notícia haverá de se produzir. Imagine-se que a imprensa desista de comparecer. Será como tirar um doce da boca do presidente. Reduzir-se aos fãs, seus gritos de “mito” e seus pedidos de selfies, será condenar-se ao tédio e à perda de tempo. Não compensa o trabalho de mobilizar os seguranças e montar o cercadinho. Para o país, o benefício será o abandono de uma arena de encontros viciados, em que o esclarecimento, objetivo das entrevistas coletivas, perde para a empulhação e a bazófia.Publicado em VEJA de 22 de janeiro de 2020, edição nº 2670