Entre vitórias e tropeços, Bolsonaro mostra postura errática como cabo eleitoral
O maior transtorno bolsonarista do primeiro turno ocorreu no Rio, onde Alexandre Ramagem foi derrotado por Eduardo Paes
Para Jair Bolsonaro, o primeiro turno das eleições municipais funcionou como um teste de popularidade — e o resultado não foi lá dos melhores. Derrotado por Lula em 2022 e condenado à inelegibilidade até 2030 pela Justiça Eleitoral, dois fatores que reduzem o poder de influência de quem até pouco tempo atrás reinava absoluto no campo da direita, o ex-presidente colheu percalços inesperados no papel de cabo eleitoral, muito embora sua presença tenha alavancado a alturas nunca vistas muitos candidatos de sua agremiação, o Partido Liberal (PL). Acostumado a agir intuitivamente, de maneira impulsiva e contraditória, desta vez ele até se sentou com caciques do PL para fazer algo inédito: planejar estratégias eleitorais, com base em mapas e planilhas — e também aí amargou decepções, colhendo derrotas ruidosas em escolhas mais pessoais. “O sentimento antissistema, que favoreceu Bolsonaro em 2018, segue orientando a escolha de muitos eleitores”, diz Carlos Melo, professor de ciência política do Insper. “Mas ele mesmo já não tem o amplo comando do conservadorismo no Brasil.”
No lado positivo da balança do prestígio bolsonarista pesa a participação do PL no segundo turno em nove capitais — Belo Horizonte, Fortaleza, Goiânia, Aracaju, Cuiabá, Belém, Manaus, João Pessoa e Palmas — e o avanço no total de eleitores conquistados pela sigla, que subiu 240% entre 2020 e 2024, abarcando mais de 15 milhões de votos. “Tudo isso se deu graças a ele. Jamais em nossas vidas havíamos sequer disputado segundo turno em capitais”, comemora o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, um dos responsáveis por articular visitas do ex-presidente a 144 cidades durante a campanha.
Bolsonaro serviu de cabo eleitoral infalível em vários outros embates de peso país afora. Em Goiânia, onde Ronaldo Caiado (União Brasil), outro presidenciável, esperava disputar o comando da cidade com o PT, o PL lançou um desconhecido, Fred Rodrigues, que usou e abusou da associação de sua imagem com a do ex-presidente e deixou todos os adversários para trás (ele ficou 4 pontos à frente de Sandro Mabel, do União Brasil, com quem vai disputar o segundo turno). Arrancada semelhante ocorreu em Belo Horizonte, cidade em que o deputado estadual Bruno Engler, de apenas 27 anos, superou em 19 pontos os votos do popular apresentador de TV Mauro Tramonte, lançado pelo governador Romeu Zema. “Fui recebido com bons olhos e bons ouvidos, muito por causa do capital político do ex-presidente”, enfatiza Engler.
Com ajuda de Bolsonaro, o desempenho do PL também surpreendeu no Nordeste, onde anulou o domínio petista dos últimos anos. Em João Pessoa, o negacionista ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga, que andava sumido, está no segundo turno. André Fernandes, em Fortaleza, o segundo maior colégio eleitoral fora do Sudeste, também estará nas urnas em 27 de outubro. Para a segunda rodada do pleito, estão programadas idas de Bolsonaro a todos os municípios em disputa, começando por comícios, motociatas e corpo a corpo em Goiânia, Fortaleza e Cuiabá — nessas duas últimas capitais haverá embates diretos com candidatos do PT, a rivalidade mais explorada e crucial. “O PL hoje é um partido urbano, que está identificado com a classe C, enquanto o PT ficou reduzido a grotões”, alfineta o senador Rogério Marinho (PL-RN), principal articulador do partido nas eleições municipais.
Priorizar as candidaturas próprias nas três semanas que antecedem o segundo turno, além de encher a bola do PL, evita saia justa em outras cidades onde a disputa é movida por alianças que deixam o pano de fundo das eleições presidenciais de 2026 mais em evidência — circunstância que, ao que tudo indica, incentivou Bolsonaro a ser mais Bolsonaro do que fiel soldado do partido. Fora de seu circuito eleitoral, pelo menos por enquanto, está São Paulo, onde ele cedeu aos anseios do PL e apoiou o atual prefeito Ricardo Nunes (MDB), em vez de lançar candidato próprio. Ao ver o espaço da direita mais radical ser ocupado por Pablo Marçal, no entanto, Bolsonaro se distanciou da campanha e, em determinado momento, chegou a elogiar o coach. Nos últimos dias de campanha, o ex-presidente fez gestos para tentar desfazer o mal-estar no entorno de Nunes, mas insuficientes para apagar a confusão. A postura errática rendeu críticas ferrenhas de aliados como o pastor Silas Malafaia, que se referiu ao amigo pessoal como “covarde” e “omisso”. “Que líder é esse que emite sinais duplos o tempo todo?”, questionou Malafaia.
Entrevero semelhante se observou em Curitiba, outro município afetado pelo roteiro da aliança pero no mucho: apesar de o PL compor com Eduardo Pimentel (PSD), surpreendentemente, Bolsonaro endossou, na reta final, Cristina Graeml (PMB), que se apresentou como “a única representante legítima da direita”. “Torço por você e ponto final”, disse em um vídeo de apoio à candidata (Pimentel e Graeml, quase empatados, vão para o segundo turno). No momento em que a política nacional tem um olho na votação municipal e outro em 2026, não é mero acaso que as duas capitais a escancarar rachas em coalizões da direita se situem em estados nos quais os governadores — Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Ratinho Junior (PSD) — não escondem a pretensão de chegar ao Palácio do Planalto.
Entre os transtornos bolsonaristas, o maior e mais doído ocorreu no Rio, a cidade onde o ex-presidente fez sua carreira política: lá, Alexandre Ramagem, ex-comandante da Abin escolhido a dedo por contar com a estrita confiança da família, foi derrotado em primeiro turno por Eduardo Paes (PSD), apoiado por Lula. O revés carioca só não teve gosto mais amargo porque Carlos Bolsonaro, o filho Zero Dois, se reelegeu para seu sétimo mandato como vereador, com a votação recorde. Outro filho, Jair Renan, estreante nas urnas, disputou uma vaga na Câmara de Balneário Camboriú, em Santa Catarina, e também se tornou o mais votado (carregado pelo sobrenome, já que, por orientação paterna, quase não falou em público). Passadas estas eleições, a família se dedicará à missão de derrubar a inelegibilidade do chefe via projeto de lei de anistia aos presos pelos atos golpistas de 8 de janeiro, o que permitiria disputar a Presidência em 2026. Até lá, fará de tudo para recuperar o poder de fogo. Mesmo dando passos erráticos na campanha municipal, o que o levou a amargar derrotas importantes, o capitão mostrou possuir uma reserva de munição de popularidade nada desprezível.
Com reportagem de Duda Monteiro de Barros
Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2024, edição nº 2914