Atenção ao tsunami
Desaceleração da economia, desarticulação política, volta dos protestos de rua e suspeitas sobre filho do presidente colocam governo numa maré desfavorável
Causando até certa apreensão no momento de sua fala, o presidente Jair Bolsonaro previu um “tsunami” na semana passada. Se lhe falta sensibilidade em algumas situações, o capitão mostrou que tem talento para prognósticos. A sucessão de fatos negativos para o governo nos últimos dias combina, à perfeição, com a imagem ameaçadora de uma grande onda que se forma. Segundo dados preliminares do Banco Central, a economia brasileira recuou 0,68% no primeiro trimestre. No Congresso, o Planalto sofreu mais uma derrota, com a convocação do ministro Abraham Weintraub para prestar esclarecimentos sobre o congelamento de gastos na área da educação. Enquanto o ministro falava no plenário da Câmara, manifestantes foram às ruas em mais de 200 cidades para protestar contra o bloqueio de verbas, na primeira grande mobilização popular contra a gestão Bolsonaro. Houve ainda um revés no campo da ética, aquele em que a primeira-família da República desfila como imaculada. A Justiça decretou a quebra dos sigilos bancário e fiscal do senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um, suspeito de lavar dinheiro por meio de transações imobiliárias e de reter parte dos salários dos funcionários de seu gabinete quando dava expediente como deputado estadual no Rio de Janeiro.
Coube ao próprio vereador Carlos Bolsonaro delinear a gravidade da situação. Disse o Zero Dois numa rede social: “Onde estão os caras feias, os identificadores de problemas, os escritores de cartas para aliados ‘desbocados’? O silêncio não tem nada a ver com a descoberta de seus devidos lugares. O que está por vir pode derrubar o capitão eleito. O que querem é claro!”. Com alto poder de destruição, os tsunamis políticos ajudam a derrubar governantes eleitos, sejam capitães ou civis. Dilma Rousseff, por exemplo, foi vítima de uma tormenta desse tipo e sofreu o impeachment depois de perder apoio no Congresso, ver sua popularidade despencar e levar a economia à recessão. A situação de Bolsonaro não se compara à de sua antecessora (existe tempo suficiente para o presidente fugir da gigantesca onda), mas ele já colhe desgastes em frentes estratégicas. A aprovação ao governo caiu de 49% para 35% em apenas quatro meses, de acordo com a mais recente pesquisa do Ibope. Já a reprovação saltou de 11% para 27%. A família Bolsonaro desdenha dos números. “As pesquisas erraram na campanha e estão erradas de novo. Não damos ibope para elas”, diz, ressaltando o trocadilho, um integrante do clã, que pediu para não ser identificado.
Dos Estados Unidos, o próprio presidente reforçou esse discurso e desqualificou as manifestações contra o bloqueio de recursos para a educação, que reuniram 1 milhão de pessoas, segundo os organizadores (veja a reportagem). “A maioria ali é militante, não tem nada na cabeça. Se perguntar 7 x 8 pra ele, não sabe. Se perguntar a fórmula da água, não sabe, não sabe nada. São uns idiotas úteis, uns imbecis, que estão sendo usados como massa de manobra de uma minoria espertalhona que compõe o núcleo de muitas universidades federais no Brasil”. Em vez de abrir-se ao diálogo, Bolsonaro preferiu partir para o confronto, como se ainda estivesse em campanha. Até aliados reconhecem que essa estratégia pode servir de combustível para novas manifestações. Desde que assumiram o poder, o presidente e seus familiares costumam creditar as dificuldade que enfrentam a resistências espúrias — de corruptos, comunistas, globalistas etc. As sucessivas derrotas no Congresso, alegam, seriam consequência do apego dos parlamentares à velha política e à cartilha do fisiologismo. Essa tese é conveniente para o governo, que entoa aquilo que certa fatia do eleitorado quer ouvir, mas não retrata a realidade. E a realidade é que Bolsonaro tem dificuldade em fazer política, nova ou velha.
Hoje, a bancada governista conta com o apoio oficial do PSL, o partido do presidente, e informal do Novo, que juntos têm 62 dos 513 deputados. A aprovação da reforma da Previdência requer votos favoráveis de pelo menos 308 deputados. Os articuladores políticos do governo produziram até agora mais confusão do que acordos. O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, não goza da confiança da maioria dos deputados e está sendo bombardeado até por quadros do PSL. Os líderes governistas Major Vitor Hugo e Joice Hasselmann, colegas de partido, engalfinham-se numa disputa intestina de poder, enquanto são acusados de pecados como despreparo e arrogância. Resultado: a agenda do governo corre risco no Congresso. A medida provisória que reduziu o número de ministérios, um dos primeiros atos assinados por Bolsonaro, está ameaçada de perder a validade. Se for votada, deve sofrer alterações. Parlamentares querem tirar do Ministério da Justiça o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), transferindo-o para o guarda-chuva do Ministério da Economia, o que também serviu para alfinetar o superministro Sergio Moro (veja o quadro na pág. 44). Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, já deixaram claro que devem trabalhar para barrar o decreto presidencial que ampliou o porte de armas, uma das principais bandeiras dos bolsonaristas.
A própria história da convocação do ministro da Educação ilustra à perfeição o grau de debilidade da articulação política. A ideia de cobrar explicações de Weintraub partiu do PCdoB, que tem apenas oito deputados. O chamado Centrão, um agrupamento de legendas conhecido por mercadejar seu apoio aos presidentes de turno, aderiu de pronto à ideia, juntamente com siglas consideradas independentes. O resultado foi uma senhora surra: o plenário aprovou a convocação por 307 votos a 82. Bolsonaro até tentou evitar a derrota, recebendo no Planalto líderes de partidos nanicos. No encontro, o presidente ouviu questionamentos sobre o bloqueio do orçamento da Educação e foi aconselhado a adiar a medida para o segundo semestre. Aparentando ter sido convencido, ligou para Weintraub na frente dos parlamentares. Há versões diferentes para o que ocorreu em seguida. Os representantes dos partidos presentes à reunião dizem que o presidente determinou ao ministro a suspensão do bloqueio de verba. “Essa é uma decisão do presidente. Chame a imprensa e anuncie essa decisão em coletiva”, teria ordenado Bolsonaro. Líder do PSL na Câmara, o deputado delegado Waldir até entrou às pressas no plenário da Casa para anunciar a boa-nova, mas foi logo desmentido pela Casa Civil.
Em sua fala aos deputados, Weintraub tentou esclarecer o que chamou de “mal-entendido”. Ele disse que, na conversa por telefone com Bolsonaro, explicou ao presidente que não havia corte de verbas, mas apenas uma suspensão temporária, chamada de contingenciamento no jargão técnico. Bolsonaro teria ficado satisfeito com as explicações e mantido o plano original. Weintraub foi convocado pela Câmara na ausência de Rodrigo Maia, que estava em viagem aos Estados Unidos para encontros com investidores e empresários. Do exterior, Maia fez duras críticas ao Planalto: “Ainda não compreendemos, olhando a longo prazo, quais são as políticas que esse governo trouxe para sobrepor aos treze anos de governo do PT”.
Fora dos microfones, as críticas são ainda mais pesadas. Maia acusa Bolsonaro e seus filhos de tentar intimidar parlamentares, inclusive aliados, por meio de uma guerrilha virtual (veja a reportagem). VEJA teve acesso a uma troca de mensagens do presidente da Câmara com deputados em um grupo no WhatsApp chamado “núcleo restrito”. Lá, Maia enviou uma série de reproduções de mensagens que tem recebido em seu telefone pessoal, sempre vindas de números desconhecidos. Coisas como “O Brasil não te colocou para ficar de brincadeira com o meu dinheiro” e “Estamos de olho em você, Rodrigo Maia”. As mensagens também manifestam apoio ao ministro Sergio Moro. “Robôs virtuais”, escreveu Maia no grupo. Líderes de partidos contam ainda que recebem ameaças, xingamentos e acusações por estarem supostamente atuando contra o Brasil. A reclamação recorrente é que o Planalto quer tratorar o Congresso, usando o exército bolsonarista nas redes sociais como arma de persuasão. Esse ambiente conflagrado ameaça até mesmo a reforma da Previdência, que nunca contou com tanta boa vontade dos partidos, inclusive os de oposição. “Infelizmente, os debates da reforma vão sendo contaminados por crises criadas pelo próprio governo”, disse o deputado Marcelo Ramos (PR), presidente da comissão especial que analisa o tema.
Na semana passada, durante uma audiência na Câmara, o ministro da Economia, Paulo Guedes, fez mais um apelo em favor das mudanças no regime previdenciário. Em tom alarmista, disse que o país não sairá do “fundo do poço” se a proposta não for aprovada. Seu discurso foi reforçado pelo recuo da economia no primeiro trimestre (veja a reportagem) . Para a economista-chefe da XP Investimentos, Zeina Latif, não há problemas apenas com relação à tramitação da reforma. Ela diz que o governo ainda não preparou uma agenda estruturante capaz de estimular o crescimento e, assim, resgatar a economia e o emprego do tal fundo do poço. “E se as manifestações populares crescerem? E se houver outra greve dos caminhoneiros? E a crise na Argentina?”
Bolsonaro também está preocupado com algumas dessas questões. Ele decidiu trocar o comando da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), vinculada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, comandado pelo general Augusto Heleno. O novo diretor-geral da Abin é o delegado da Polícia Federal Alexandre Ramagem Rodrigues, que coordenou a equipe de segurança de Bolsonaro na reta final da campanha eleitoral. O presidente estava insatisfeito com o trabalho da agência, à qual cabe antever toda e qualquer ameaça ao governo e à família presidencial, o que inclui o processo judicial que tem seu filho Flávio como protagonista. Como o presidente sabe, antes de o tsunami estourar, o mar recua rapidamente. É neste momento que estamos, em que ainda é possível escapar ileso de tal ameaça.
Publicado em VEJA de 22 de maio de 2019, edição nº 2635
Qual a sua opinião sobre o tema desta reportagem? Se deseja ter seu comentário publicado na edição semanal de VEJA, escreva para veja@abril.com.br