Em Brasília, é muito comum a análise de que a arte de fazer política passa necessariamente pelo compadrio, o fisiologismo e a troca de favores. De fato, essas práticas estão profundamente arraigadas no jogo do poder e, vez por outra, elas aparecem. Não raro, de forma inusitada e envolvendo personagens de destaque. O senador Davi Alcolumbre (DEM), por exemplo. Ele começou a carreira como vereador de Macapá, elegeu-se deputado federal e, depois, senador. Em 2019, assumiu por dois anos a presidência do Congresso, o quarto posto na hierarquia da República. Hoje, comanda a poderosa Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Passam pelo crivo do parlamentar os projetos de lei, as propostas de emendas e a avaliação de autoridades para cargos importantes de Estado. O advogado André Mendonça, indicado pelo presidente Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal, passa por um tremendo constrangimento enquanto aguarda há quase três meses a boa vontade do senador em agendar sua sabatina — boa vontade, diga-se, que não existe.
OUÇA AQUI A ÍNTEGRA DO ÁUDIO:
Em 2013, Alcolumbre, na época um político ainda desconhecido do grande público, exercia o seu terceiro mandato de deputado federal. Um áudio obtido por VEJA revela que o senador, sem que ninguém soubesse, seguia alguns péssimos ensinamentos. Na gravação, o parlamentar combina com uma mulher a melhor forma de lhe pagar um salário sem que ela precisasse trabalhar. O dinheiro seria debitado dos vencimentos que o deputado recebia da Câmara. O ato, porém, estava longe de ser caridade. Alcolumbre estava atendendo ao pedido de um amigo, o desembargador Gilberto Pinheiro, do Tribunal de Justiça do Amapá (TJ-AP), que precisava resolver uma questão pessoal com relativa urgência. O problema era o seguinte: Tatielle Pereira de Castro, a mulher que aparece no áudio, era funcionária do TJ-AP. Ela trabalhou durante quase dois anos no tribunal, até que surgiram certos rumores sobre a natureza dessa proximidade, o que acabou resultando em sua exoneração.
Para não deixar a ex-funcionária desassistida, o desembargador pediu ao senador que patrocinasse uma espécie de auxílio-desemprego para a mulher (na foto acima). Foi quando os dois — Alcolumbre e Tatielle — se encontraram para combinar os detalhes de como essa ajuda seria operada. Sem que o senador soubesse, Tatielle gravou a conversa. Nela, o congressista se compromete a pagar uma mesada à ex-funcionária do TJ durante dois anos, incluindo férias e décimo terceiro — mas tudo de maneira informal, às escondidas. Além disso, atendendo a um outro pedido do amigo desembargador, Alcolumbre se compromete a ajudar a comprar um carro para Tatielle. Desorientada, ela tinha acabado de se separar do marido em razão das maledicências ditas sobre o relacionamento com o desembargador.
Há uma miríade de suspeitas nessa conversa gravada: relações impróprias entre autoridades, troca de favores, nepotismo cruzado e mau uso do dinheiro e das funções públicas. Ao negociar a mesada com Tatielle, por exemplo, o senador cita que o valor seria correspondente ao que sua esposa, Liana Gonçalves de Andrade, iria receber como funcionária do mesmo TJ-AP. A conclusão que se tira do diálogo é que a contratação da esposa do senador funcionou como uma espécie de compensação financeira. Alcolumbre bancaria Tatielle por dois anos e, em contrapartida, o salário de Liana no tribunal faria o encontro de contas. “A Liana vai ganhar 8 000 reais, só que vai descontar 27,5%. Aí, quando tu coloca na máquina, dá 6 000 reais, quando tu desconta, é o que tu recebe”, disse o senador, ao explicar para a ex-funcionária a base de cálculo que usou para chegar ao valor exato da mesada. Liana, talvez por coincidência, ocupou um cargo em uma diretoria subordinada ao desembargador Pinheiro no mesmo período em que Tatielle recebeu a mesada.
A melhor maneira de como adquirir e pagar o carro sem chamar a atenção consome boa parte da conversa. “O desembargador sugeriu que você fizesse o pagamento dos 5 000, porém, tipo tirasse algum carro”, cobrou a ex-funcionária. Os dois não se entendem e ela prossegue. “É o seguinte, deputado, o que eu queria ver com você (…) agora minha vida deu aquele 180, né? Tipo, eu não tenho família aqui, mudança de casa, sem carro, sem nada, né? (…) O desembargador ele me chamou, perguntou como é que eu tava. A preocupação dele com meu casamento. Falou: ‘Olha… eu sei que agora você está só. Eu falei: ‘Olha, desembargador, eu não sei’. Ele falou: ‘Então, vamos fazer o seguinte: você precisa de um carro’. (…) Ele inclusive falou, ele me perguntou quanto que a gente tava acertando”. Tatielle sugere então a Alcolumbre que ele lhe adiantasse os dois “décimos terceiros” e “duas férias” a que teria direito. “É uma boa ideia. (…) Só me dá um tempo pra mim arrumar o dinheiro”, concordou o atual senador.
Atualmente, o desembargador Gilberto Pinheiro é presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Amapá. Procurado, não quis se manifestar. Recentemente, ele deu um voto decisivo a favor de uma ação movida pelo senador contra a rejeição das contas do diretório estadual do DEM. Tatielle montou escritório em São Paulo em 2019, no mesmo ano em que Davi Alcolumbre assumiu a presidência do Congresso. A VEJA, ela disse que não se recorda de ter conversado com o senador e afirma que não recebeu dinheiro algum. “O Amapá é pequeno, é natural que a gente se encontre com várias pessoas”, desconversou. Na gravação, Tatielle chegou a oferecer ao então deputado usar uma repartição pública como base de apoio político à campanha dele ao Senado. Por meio de sua assessoria, Davi Alcolumbre informou que desconhece o assunto. “Nunca houve nenhuma relação dessa pessoa, Tatielle Pereira de Castro, com o senador”, diz a nota divulgada pelo gabinete do parlamentar.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2021, edição nº 2759
NOTA DO GABINETE DE DAVI ALCOLUMBRE EM RESPOSTA À REPORTAGEM:
O áudio divulgado pela matéria deixa claro que a promessa de ajuda à Sra. Tatielle Pereira de Castro seria apenas uma doação com recursos próprios para ajudar um apoiador diante da sua separação conjugal, e que não tinha qualquer relação com o desembargador citado, como de fato não tem. É leviana a informação sobre suposta troca de favores porque, na época dos fatos (2013), a esposa do senador Davi Alcolumbre já trabalhava na Escola Judicial do Amapá há mais de 3 anos, cujo ingresso se deu por meio de processo seletivo. Portanto fica claro que nunca houve qualquer troca de favores. Os fatos mencionados ocorreram há mais de oito anos e sua nova divulgação. O senador Davi seguirá trabalhando pelo bem do interesse público para garantir conquistas para o estado do Amapá e para o Brasil.