Desde a sua posse na Presidência da República, Jair Bolsonaro adota a estratégia de radicalizar e recuar, de forma sistemática, a fim de testar os seus limites e os das instituições. Essa aposta na tensão permanente resultou em ameaças do presidente e de seus aliados ao Congresso, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e à imprensa. De quebra, dispersou energia que o governo deveria gastar no enfrentamento de emergências nacionais, da pandemia de Covid-19 à recessão econômica. As provocações são conhecidas. “Não teremos outro dia como ontem. Chega”, bradou o presidente, na saída do Palácio da Alvorada, após o STF autorizar uma ação policial contra empresários e blogueiros bolsonaristas. Em entrevista a VEJA, o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, reforçou o coro. “O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora, o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda.” Esses rompantes não surtiram o efeito esperado, e os problemas de Bolsonaro só aumentaram. Diante de tanta instabilidade desnecessária e poucos resultados práticos, o presidente finalmente decidiu mudar de estratégia.
Nas últimas semanas, Bolsonaro escalou ministros para tentar desanuviar a relação com representantes do Judiciário, cortejou líderes do Congresso, afastou-se de seu núcleo de apoio mais radical e até conteve sua pregação autoritária, inclusive nas redes sociais. Ou seja: Bolsonaro agora aposta as suas fichas naquilo que está sendo chamado de “pacificação”. A mudança de postura é compreensível, já que o tom beligerante levou o capitão às cordas, acossado por dezenas de pedidos de impeachment, investigações que ameaçam desestabilizar o seu mandato e rejeição galopante a seu desempenho à frente do país. Diz um dos ministros mais influentes do governo: “Se Bolsonaro continuasse dobrando a aposta, iam cassá-lo, mas, se ele recua e mantém a convivência, nada acontecerá”. Para que nada aconteça, bombeiros foram a campo em diversas frentes. O próprio presidente conversou pessoalmente com um ministro do Supremo. Ao relatar o teor da prosa, sob a condição de não ter o seu nome revelado, esse magistrado contou que alertou Bolsonaro de que manifestações consideradas antidemocráticas poderiam provocar protestos contra o governo e desencadear outras a favor da democracia, o que de fato aconteceu em algumas cidades.
Bolsonaro, acrescentou o ministro do STF, correria o risco de ser vítima de uma espécie de reedição das manifestações de rua de junho de 2013, que estiveram na origem da perda de poder da então presidente Dilma Rousseff. Tal advertência parece ter surtido efeito, já que as provocações saíram de cena. Responsáveis pela relação com o Judiciário, os ministros Jorge Oliveira, da Secretaria-Geral da Presidência, José Levi do Amaral, da Advocacia-Geral da União, e André Mendonça, da Justiça, também se reuniram com o ministro do STF Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos dos atos antidemocráticos e das fake news. O encontro ocorreu na casa de Moraes, em São Paulo, dias depois de apoiadores do presidente terem desferido um ataque simbólico, com rojões e fogos de artifício, à sede do Supremo, em Brasília. Esse ataque, de acordo com um dos ministros mais próximos de Bolsonaro, deixou o país à beira de uma ruptura institucional. O presidente foi alertado de que, se não se afastasse dos extremistas, colocaria o próprio mandato em risco. O recado era claro: cultivar a animosidade do Supremo só lhe traria problemas. Ao receber o trio de ministros, Moraes reforçou essa percepção.
Durante a conversa, o ministro do STF demonstrou irritação com as hostilidades virtuais, que extrapolaram para protestos em frente à sua residência. Os governistas responderam que o presidente também era alvo de ataques e chegaram a mostrar uma foto de ameaça de estupro à filha de Bolsonaro. Em seguida, disseram que Bolsonaro estava disposto a dialogar. Um gesto claro nesse sentido foi a demissão de Abraham Weintraub do cargo de ministro da Educação. Expoente da ala ideológica, Weintraub chamou os ministros do Supremo de vagabundos na famosa reunião ministerial de abril e disse que, se dependesse dele, os magistrados seriam postos na cadeia. “O que não podemos é viver em clima de ameaça”, disse um dos mais experientes integrantes do STF a Jorge Oliveira. Os acenos à conciliação embutem a esperança de Bolsonaro de interromper a série de ameaças que ele enfrenta no Judiciário.
Não será muito fácil. Na semana passada, Moraes prorrogou por seis meses o inquérito das fake news. Já o decano Celso de Mello estendeu por trinta dias o inquérito que apura suposta interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal, conforme acusação apresentada pelo ex-ministro Sergio Moro. Além disso, a Justiça Eleitoral reabriu duas ações que pedem a cassação da chapa formada por Bolsonaro e Hamilton Mourão na eleição de 2018. Nenhum desses movimentos se compara, no entanto, a uma vitória, mesmo que parcial, obtida por Bolsonaro. Na terça-feira 30, o ministro Gilmar Mendes decidiu pedir explicações ao Ministério Público sobre uma decisão da Justiça fluminense que garantiu ao senador Flávio Bolsonaro o direito a foro privilegiado no caso da rachadinha. Mendes poderia ter derrubado essa decisão imediatamente, já que ela contraria a jurisprudência do Supremo, mas preferiu deixar a análise para depois do recesso do Judiciário. O ministro Celso de Mello, relator de outra ação que discute o foro privilegiado de Flávio, também abriu prazo para autoridades se manifestarem antes do julgamento. Na prática, os ministros deram a Jair e Flávio Bolsonaro tempo para lidar com a situação, o que é um senhor trunfo. Em tese, enquanto nenhum dos dois processos é decidido pelo STF, até a prisão preventiva de Fabrício Queiroz, protagonista do escândalo, pode ser derrubada.
Outro movimento de conciliação importante foi feito em direção ao Congresso. Em meio às crises política, econômica e de saúde pública, Bolsonaro já havia abandonado o discurso contra a velha política e aderido à barganha, negociando o apoio do chamado Centrão, grupo formado por partidos que já estrelaram escândalos de corrupção diversos, do mensalão ao petrolão. Seu objetivo ao compartilhar cargos entre essas legendas foi criar uma base governista para conter qualquer tentativa de impeachment e, se possível, aprovar projetos capazes de atenuar a derrocada econômica. Na semana passada, o presidente deu um passo adiante e flertou, diante das câmeras, com os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, convidados a participar da cerimônia de prorrogação do auxílio financeiro pago a trabalhadores informais. O governo manteve o valor de 600 reais, tal qual defendido pelos congressistas, enquanto o ministro da Economia, Paulo Guedes, preferia algo entre 200 e 300 reais. “É uma satisfação tê-los aqui. É um sinal de que, juntos, nós podemos fazer muito pela nossa pátria”, declarou o presidente.
ASSINE VEJA
Clique e AssineEssa versão paz e amor tem muita influência do novo ministro das Comunicações, o deputado licenciado Fábio Faria, filiado ao PSD, uma das siglas do Centrão. Faria é defensor da tese de que Bolsonaro precisa dialogar com os parlamentares, a imprensa e as instituições. Dialogar de uma forma franca, sem enxergar nos interlocutores, como faz até hoje, hordas de conspiradores prontos para derrubá-lo do poder. Recém-empossado, o novo ministro está fazendo um giro pelas principais redações do país para melhorar a relação do presidente com os meios de comunicação. Paralelamente a isso, o próprio Bolsonaro praticamente abandonou suas falas no cercadinho do Palácio da Alvorada, aquelas em que costumava disparar contra tudo e contra todos. “Eu levo a bandeira branca. Todo mundo tem de reconhecer que errou. Precisamos acabar com o clima de campanha”, disse o ministro das Comunicações.
Outro setor que pode ser afagado em breve é o do agronegócio exportador. Ministros com gabinete no Planalto aconselharam Bolsonaro a trocar o titular da pasta do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que assumiria outro cargo, numa tentativa de afastar a ameaça de boicote a produtos brasileiros por parte de compradores internacionais, contrariados com o avanço do desmatamento na Amazônia. Esses conselheiros também sugeriram que Bolsonaro se afaste gradualmente de seus apoiadores mais radicais. A meta, dizem, é evitar que ele se torne o líder apenas de uma espécie de “PSOL de direita”. Segundo a mais recente pesquisa do Datafolha, a aprovação a Bolsonaro é de 32%, e a rejeição, de 44%. O presidente vem perdendo apoiadores em setores em que teve grande votação, como os mais ricos e os mais escolarizados, mas consegue compensar essa debandada avançando em popularidade entre os mais pobres. De acordo com o Datafolha, a população de baixa renda respondia por 32% daqueles que consideram o governo ótimo ou bom. Agora, são 52%. A aposta na prorrogação do auxílio emergencial, e no valor de 600 reais, é também uma questão de sobrevivência política.
A boa notícia é que Bolsonaro começa a sair do modo digital, que tanto contribui para tocar fogo no país, para o analógico. Para manter essa fatia do eleitorado, que nas últimas eleições marchou ao lado do PT, Bolsonaro pretende fazer viagens e inaugurações pela Região Nordeste. “Muitas economias locais do Nordeste subsistem do comércio, do serviço. A cada vez que o governo aumenta o benefício, como agora no caso do auxílio emergencial, ajuda a crescer a economia desses municípios. É um efeito em cadeia. Voltam felizes para casa o beneficiário do programa, o comerciante e seus funcionários e o pequeno agricultor”, diz a cientista política Luciana Santana, professora da Universidade Federal de Alagoas. Ela acrescenta, sobre a situação de Bolsonaro: “O presidente nunca foi um outsider da política tradicional. Ele sabe como funciona. Vinha mantendo uma rotina de confronto e enfrentamento porque lhe conferia popularidade. Agora, não dá mais. Tira-lhe governabilidade”. E também energia. Com apenas um ano e seis meses de mandato, Bolsonaro está esgotado, segundo contou a VEJA um de seus amigos. O motivo são as múltiplas frentes de batalha em que ele se envolve. “Os apoiadores esperam que ele brigue o tempo todo, mas não tem ser humano que aguente”, afirmou o amigo. É um excelente momento para um cessar-fogo em embates estéreis que não levam a lugar algum, servem apenas como diversionismo e alimentam as mais estapafúrdias teorias conspiratórias. Ao procurar a pacificação, Bolsonaro dá uma chance a si mesmo e ao Brasil de superar a grave crise que enfrentam. Tomara que a bandeira branca continue estendida por muito tempo no Alvorada e no Planalto. De preferência, até o fim do mandato.
Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694