Jair Bolsonaro, em entrevista a VEJA: “Hoje sou um liberal”
O presidente promete mais privatizações, se diz arrependido das polêmicas com as mulheres, ataca Lula e volta a fazer críticas pesadas a Alexandre de Moraes
No início da tarde da última terça, 4, durante a passagem de Jair Bolsonaro por São Paulo, o festivo assédio de dezenas de políticos em torno do presidente, que ficou algumas horas no terminal reservado a autoridades no Aeroporto de Congonhas, irritou um dos seus coordenadores de campanha. “Não ganhamos nada ainda”, esbravejava ele. Havia no local um certo clima de euforia pelos resultados da eleição do domingo anterior, potencializada pelos primeiros e bem-sucedidos movimentos no esforço para o segundo turno. Um dos principais avanços foi firmado ali mesmo, com o governador paulista Rodrigo Garcia. Derrotado no pleito estadual, o tucano anunciou adesão ao presidente e ao candidato dele ao Palácio dos Bandeirantes, Tarcísio de Freitas. Na manhã do mesmo dia, Bolsonaro já havia aparecido ao lado do governador reeleito Romeu Zema em Brasília para anunciar o apoio dele à sua campanha. Em meio a essa onda, até o ex-desafeto Sergio Moro se acertou com o presidente.
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Os acordos aconteceram ao ritmo da urgência do presidente, que tem diante de si um grande desafio. Apesar de ter sido bem menor que as projeções dos mais tradicionais institutos de pesquisa, a distância da votação dele para o primeiro colocado, o petista Luiz Inácio Lula da Silva, ainda é grande. Daqui até o dia 30, Bolsonaro precisa conquistar mais 6 milhões de votos, de forma a virar o jogo, façanha inédita no histórico brasileiro de eleições presidenciais. Em paralelo aos movimentos políticos, a campanha do capitão deu novas amostras de que pretende fazer valer o peso da máquina pública. Exemplo disso foi o anúncio recente da distribuição do décimo terceiro salário do Auxílio Brasil a mulheres do programa, justamente a fatia do eleitorado mais resistente a votar no capitão. Serão 17 milhões de beneficiadas, a um custo estimado em 10 bilhões de reais, despesa não prevista no Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2023, em análise no Congresso Nacional.
Em pouco mais de uma hora de entrevista exclusiva concedida a VEJA na tarde da mesma terça, aliás, Bolsonaro fez um mea-culpa de suas polêmicas com as mulheres. “Eu errei”, disse, referindo-se a um bate-boca no Congresso em 2014, no qual disse que só não estupraria a deputada Maria do Rosário por ela ser feia. Bolsonaro lembrou ainda de outro episódio que gerou revolta nas redes sociais, quando declarou que, depois de quatro filhos homens, a caçula nasceu de uma “fraquejada”. “São brincadeiras que a gente extrapola e se arrepende”, afirmou. “A ‘fraquejada’ foi que meu coração amoleceu com a chegada da menina, sempre me emociono com a minha filha e ela foi a primeira pessoa com quem me preocupei após levar a facada”, completou, com lágrimas nos olhos. Em outro momento da entrevista, ele se emocionou também ao falar das políticas de apoio para reduzir o drama de trabalhadoras como as mulheres marisqueiras, que tiram o sustento em condições insalubres em manguezais, um dos exemplos que gosta de citar para se queixar de que seria injusto o rótulo de “misógino”, atribuído com frequência a ele.
Além do esforço para vencer resistências junto ao eleitorado feminino, Bolsonaro pretende usar no segundo turno em escala maior alguns trunfos que já vem exibindo na campanha, como a melhora dos indicadores econômicos, as promessas de continuidade de políticas liberais (“vamos potencializar as privatizações”) e, sobretudo, a ênfase na comparação de seu governo com o do rival Lula. “Vamos simplesmente mostrar que fizemos muito melhor do que ele”, declarou. Em seguida, assegurou que vai manter o nível do debate: “Não vou sair do sério”. Ao mesmo tempo, no entanto, apesar do esforço para não perder a linha, sempre que provocado, ataca não apenas Lula (“ele tem uma capacidade enorme de mentir sem ficar vermelho”) e outros velhos inimigos, como o ministro do STF Alexandre de Moraes, sem deixar de lado as antigas teorias conspiratórias, que vão da ameaça da volta do comunismo às supostas vulnerabilidades das urnas eletrônicas. Confira a seguir os melhores trechos da conversa.
Jamais um candidato em desvantagem no primeiro turno conseguiu vencer as eleições. O senhor acha possível virar o jogo na reta final? Vamos mostrar o que fizemos. Estamos recuperando os empregos, reduzimos o preço da gasolina e atendemos os mais humildes com o Auxílio Brasil. O país vai para o terceiro mês seguido de deflação. O Brasil está sendo um exemplo para o mundo. O Paulo Guedes merece um Prêmio Nobel na economia.
“No passado, fui estatizante, votei contra reformas. Mas a gente evolui, se aperfeiçoa. Hoje penso diferente. Sou um liberal e o livre-mercado nos ajudou a superar a questão da pandemia”
Mesmo tendo uma votação acima das projeções dos institutos de pesquisa mais tradicionais, o senhor ficou atrás de Lula. A que atribui a permanência da força dele junto ao eleitorado? O Lula tem uma capacidade de mentir sem ficar vermelho. Basta comparar nossos governos para ver quem é melhor. Nós não pegamos o BNDES e usamos para emprestar dinheiro para ditaduras que, em grande parte, não vão nos pagar. E nós temos um pensamento de um Brasil acima de tudo e Deus acima de todos. É o lema que o povo entende perfeitamente. Resgatamos o patriotismo pelo Brasil.
Nos debates, o senhor já teve discussões duras com Lula. O clima vai esquentar ainda mais? Não vou sair do sério. Estou me contendo, mas, às vezes, falo palavrão. Mas não sou ladrão. Tenho o que apresentar e vamos comparar os governos. O Bolsa Família pagava lá atrás uma média de 192 reais. Com o Auxílio Brasil, passamos agora para 600 reais e vamos tornar isso efetivo para o ano que vem. Acabamos com as invasões do MST. Na época do Lula, você tinha vinte invasões por mês. Veja o perfil dos meus ministros e pergunte para o Lula quem seriam os ministros dele. O Zé Dirceu voltaria para a Casa Civil? Não queremos esse retrocesso para o Brasil.
Quando tiver oportunidade, que pergunta fará ao Lula nos debates? Não vou deixar de questioná-lo em alguns momentos. Ele foi condenado por unanimidade em três instâncias. Não pode falar que foi absolvido, isso não é verdade. Se os delatores devolveram aproximadamente 6 bilhões de reais, é sinal de que eles roubaram. E roubaram com a conivência do próprio presidente, como diz o ex-ministro Palocci. O Palocci diz claramente isso aí: que Lula sabia de tudo o que estava acontecendo.
Quais serão suas prioridades num possível futuro governo? Vamos potencializar as privatizações. No passado, confesso, eu era estatizante. Votei contra quase todas as reformas propostas pelos governos anteriores. Mas a gente evolui, se aperfeiçoa. Hoje sou um liberal. Quanto mais estado, pior para todo mundo. O livre-mercado nos ajudou na pandemia.
Quais estatais terão prioridade nessa lista de privatizações? Vamos avaliar ainda. Faremos com inteligência. Uma parte dos recursos dessas vendas o Paulo Guedes pensa em destinar para o pessoal do Auxílio Brasil. Ele chama isso de “chuveirada”. O restante vamos usar parte para obras, parte para abater dívidas.
Para vencer no segundo turno, o senhor precisa conquistar mais votos entre o eleitorado feminino. A que atribui a resistência das mulheres à sua candidatura? É uma narrativa que vem lá de trás. Quando eu comecei a namorar a minha esposa, uma colega disse para a Michelle que ela ia ter problema comigo de relacionamento em casa. Por que isso? É por causa das minhas posições dentro da Câmara, o embate frequente com os partidos de esquerda contra as mentiras deles. No nosso governo, tivemos conquistas importantes para as mulheres, como a redução do feminicídio. Sem querer puxar brasa para minha sardinha, não posso deixar de falar da ajuda que Michelle dá nessa área com o Pátria Voluntária, que, entre outras coisas, cuida de mães de filhos com doenças raras, pessoas que eram completamente abandonadas.
O senhor não se arrepende de nenhum episódio de polêmicas públicas com as mulheres? Eu errei, como naquela discussão com a Maria do Rosário, em 2014 (nota da redação: na ocasião, Bolsonaro afirmou na Câmara que a deputada do PT-RS não merecia ser estuprada por que era “muito feia”). Estávamos discutindo na hora o caso de um estuprador e eu me exaltei. Aconteceu. Falhei também quando afirmei que, depois de quatro filhos homens, veio uma menina, classificando aquilo como uma fraquejada. Foi uma brincadeira, extrapolei. Na verdade, a fraquejada foi que meu coração amoleceu com o nascimento da caçula. Eu me emociono sempre com a minha filha. Quando levei a facada, em 2018, eu pedia a Deus que não deixasse órfã minha filha Laura, que hoje tem 11 anos. Não posso ser julgado pelo resto da vida por uma frase infeliz. Sou cristão e tenho uma confissão a fazer: todos os dias, dobro meus joelhos, rezo um pai-nosso e peço a Deus que o nosso povo não experimente as dores do comunismo.
O senhor acha mesmo real o risco da volta do comunismo? É um risco real. Onde eles entram, a economia não vai para a frente. O próprio Lula, além de falar em censurar a mídia, fala em reestatização da Eletrobras, em valorizar o MST, em voltar a emprestar dinheiro para ditaduras. Ele é um bom socialista. Isso até acabar o dinheiro.
O tema corrupção voltou ao debate eleitoral, sendo que sua família é acusada de comportamento suspeito de compra de imóveis com dinheiro vivo. Como o senhor explica isso? Já vasculharam minha vida, e nada encontraram. Falam que eu protegi a minha família de certas acusações. Eu não tenho esse poder. Na questão dos imóveis, pegaram imóveis comprados desde 1990, de gente com quem eu não tenho mais contato, colocaram na lista até um ex-cunhado. Não sei detalhes da vida dele, nem das minhas ex-mulheres. Os raros contatos que tive com elas foi para tratar dos nossos filhos. Por que investigar só um candidato, e não todos?
Uma das pessoas que levantaram suspeitas sobre o senhor foi Sergio Moro, que deixou o governo falando de interferência na PF. Eleito agora senador, ele anunciou apoio à sua candidatura. Como recebeu esse apoio? Ninguém interfere na PF, isso não existe. Falei na última segunda com o Moro. Ele não tinha experiência nenhuma de política, faltou jogo de cintura. Moro tinha uma vontade de ir para o STF. Eu lembrei disso em nossa conversa e falei: “Você acha que passaria na sabatina do Congresso, depois de ter prendido vários políticos?”. Ele concordou. Agora, é bola para a frente. O meu governo não persegue ninguém.
A pandemia é outro tema que tem aparecido nos debates. O senhor faria hoje alguma coisa diferente? Lamento a pressão do Judiciário e da imprensa para castrarem a autonomia médica de receitar cloroquina e ivermectina. Quando tive Covid, tomei cloroquina e, no segundo dia, estava melhor. O grande mérito nosso foi o de comprar vacina e não obrigar ninguém a tomar. Eu não tomei, pois meu organismo já havia produzido anticorpos.
Por falar em Judiciário, faz parte mesmo de seus planos aumentar o número de vagas no STF num futuro governo? Já chegou essa proposta para mim e eu falei que só discuto depois das eleições. Eu acho que o Supremo exerce um ativismo judicial que é ruim para o Brasil todo. O próprio Alexandre de Moraes instaura, ignora Ministério Público, ouve, investiga e condena. Nós temos aqui uma pessoa dentro do Supremo que tem todos os sintomas de um ditador. Eu fico imaginando o Alexandre de Moraes na minha cadeira. Como é que estaria o Brasil hoje em dia?
O senhor declarou apoio nas eleições a um dos investigados pelo ministro, o deputado Daniel Silveira, que recebeu boa votação, mas continua inelegível. Qual análise faz desse caso? Eu assinei o indulto do deputado Daniel Silveira. Eu falava para alguns ministros mais chegados que, uma vez marcado como foi o julgamento dele, o Daniel seria condenado. Quando houve a condenação, mandei preparar o decreto. Alguns acharam que eu iria comprar uma briga com o STF. Se eu fosse ministro do Supremo, também ficaria indignado com as palavras daquele vídeo do Daniel Silveira, mas a pena não podia ser aquela, é desproporcional.
Recentemente, o senhor acusou Alexandre de Moraes de ter vazado à imprensa dados de um cartão corporativo com despesas feitas pela primeira-dama. O senhor continua com essa suspeita? O ministro quebrou o sigilo do meu ajudante de ordens. Ali tem conversa minha, troca de informações de agendas que são confidenciais… O Moraes negou que o vazamento partiu dele, mas tenho certeza de que foi ele que vazou. Ele tem que assumir isso. Sobre os gastos, nunca saquei um centavo desse cartão. Procuro me policiar, até para dar exemplo.
“O ativismo judicial do STF é ruim para o Brasil. Nós temos aqui dentro do Supremo o Alexandre de Moraes, um ministro que tem todos os sintomas de um ditador. Ele instaura, investiga, ouve e condena”
Na política internacional, ficou célebre seu alinhamento com Donald Trump. Como é seu relacionamento hoje com o presidente Joe Biden? Vocês conhecem o Joe Biden. O peso da idade chegou mais cedo para ele. Já estive em uma conversa particular com ele e foi um bom entendimento. Mas eu vejo que certas questões que aconteceram no mundo não aconteceriam no governo Trump, dada a posição de liderança dele. Alguns acham que a Guerra da Ucrânia não teria acontecido com ele no poder. Eu concordo com isso.
O senhor se arrepende da visita a Putin às vésperas do início do conflito? Por que eu fui lá? Questão de fertilizantes, de óleo diesel… Alguns acharam que eu não deveria ter ido, mas o sofrimento para nós, brasileiros, seria enorme. Teríamos uma explosão no aumento do preço dos alimentos. Sou presidente do Brasil e fui lá para defender o Brasil. Não sou presidente da Rússia, nem da Ucrânia. Na Rússia, o tratamento deles foi excepcional e chegamos a um entendimento. Conversei com o Putin por três horas e tudo o que foi acertado com ele está sendo cumprido. Os fertilizantes chegaram. Assim, nós garantimos aqui o nosso agronegócio funcionando.
Voltando ao tema eleições: dentro do que aconteceu no primeiro turno, com uma votação de 51 milhões de votos para o senhor, estão sepultadas de vez suas suspeitas sobre o funcionamento das urnas eletrônicas e a lisura do pleito? A gente sabia que o Lula, devido ao recall, ia ter uma boa votação. Mesmo assim, o resultado final foi acima do que eu esperava, mas dentro de uma margem de erro prevista por nós. Não podemos, como eu sempre disse, acabar as eleições com o manto da desconfiança. O ideal era termos o voto impresso. Infelizmente, não foi possível. Eu deleguei a questão das urnas às Forças Armadas, que foram convidadas a contribuir com o TSE e estão analisando o processo com lupa. Eles têm centenas de pessoas especializadas no assunto e me dizem o seguinte: por melhor que seja o trabalho de todo mundo, pode alguém lá num cantinho burlar isso aí. Ataque hacker existe no mundo inteiro. Se conseguem invadir até os sistemas da Nasa, como posso acreditar que o nosso não pode ser vítima disso, em que pese o TSE acreditar que ele é inexpugnável?
Então o senhor continua desconfiado da lisura do processo? À frente hoje do TSE está justamente o Alexandre de Moraes e nos espanta a forma como ele e outros ministros dizem, com convicção: “Ah, o sistema é à prova de qualquer fraude”. Eles dificultaram e retardaram a participação das Forças Armadas junto ao TSE. Tem o sentimento da opinião pública que houve coisa errada. Tem esse sentimento. Sempre fico preocupado.
Publicado em VEJA de 12 de outubro de 2022, edição nº 2810