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Bolsonaro retoma negacionismo, mas tem derrota com passaporte da vacina

O discurso contra a exigência de vacinação é aceno aos radicais, mas o apoio da população e a firmeza de instituições como o STF são antídotos à ignorância

Por Reynaldo Turollo Jr. Atualizado em 4 jun 2024, 12h36 - Publicado em 18 dez 2021, 08h00

Logo que assumiu o comando da Saúde, em março, o cardiologista Marcelo Queiroga visitou a Faculdade de Medicina da USP em sua primeira agenda pública, no que foi visto à época como uma sinalização de mudança de rumo na pasta. Enfim, acreditava-se, ela passaria a caminhar junto com a ciência, ao contrário do que fizera o seu antecessor, o general Eduardo Pazuello. O otimismo durou pouco e, disposto a jogar seu diploma no lixo em troca de uma carreira política, Queiroga rapidamente se tornou uma espécie de fiel avalista técnico das perigosas sandices do chefe. Depois de se posicionar contra o uso obrigatório de máscaras de proteção contra a Covid-19, o ministro agora tomou a linha de frente na oposição ao comprovante de vacinação para a entrada de viajantes no Brasil (mais uma vez, uma atitude em sintonia com a conhecida posição negacionista de Jair Bolsonaro em relação aos imunizantes). Para ambos, é melhor perder a vida do que a liberdade de não se vacinar.

O discurso contra a exigência de vacinação representou uma inflexão lamentável do presidente, que vinha adotando um tom mais moderado em um momento-chave para o país, que ensaia a volta à normalidade com segurança em meio à ameaça da ômicron. Mais uma vez, coube ao Supremo Tribunal Federal, após provocação da oposição, intervir para garantir que o Estado não deixasse de considerar as boas práticas preconizadas pelos cientistas — inclusive os especialistas da própria Anvisa. O órgão recomendou a adoção do passaporte da vacina para viajantes vindos do exterior. No sábado 11, o ministro Luís Roberto Barroso determinou a exigência do certificado, o que começou já na segunda-feira 13.

BARREIRA - Aeroporto de Guarulhos: a exigência aos viajantes começou a ser aplicada na segunda-feira 13 -
BARREIRA - Aeroporto de Guarulhos: a exigência aos viajantes começou a ser aplicada na segunda-feira 13 – (Zanone Fraissat/Folhapress/.)

A pregação oficial contra o passaporte coincidiu com um episódio policial cercado de desconfianças. Na sexta-feira 10, os sistemas do Ministério da Saúde sofreram um ataque hacker, que tirou do ar os dados sobre quem se vacinou — até quinta 16, continuava impossibilitando que as pessoas gerassem o seu comprovante de vacinação. A Polícia Federal e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) foram acionados para investigar a ação, cuja autoria foi assumida por um grupo que se autodenomina Lapsus$. Uma análise inicial da PF identificou que a integridade dos bancos de dados não foi prejudicada, apesar de as informações terem saído do ar. Não se sabe até o momento quem promoveu o ato criminoso, mas não se descarta que sejam ativistas simpáticos ao discurso bolsonarista.

Investigações à parte, o fato é que a insistência do presidente em bater na tecla negacionista vai além de suas obscuras crenças pessoais. Parte da plateia que ainda o considera um “mito” aplaude a postura e isso ajuda o presidente a manter a chama acesa nas redes sociais. Segundo levantamento feito pela FGV-DAPP (Diretoria de Análise de Políticas Públicas), o debate sobre o passaporte da vacina gerou mais de 164 000 tuítes entre 10 e 14 de dezembro, com 64% das interações sendo contrárias à implantação da medida — muitos robôs, claro. O pico foi na noite de sábado, com a decisão de Barroso. O ministro do STF e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que anunciou que cobraria certificado de vacinação nos aeroportos do estado, foram os alvos preferenciais das críticas (veja o quadro).

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arte passaporte vacina

Dessa forma, o burburinho antivacina nas redes não foi obra do acaso e tem uma clara serventia política. A recaída negacionista do governo serviu como um novo aceno à base mais radical e fiel de Bolsonaro, na qual ele aposta para chegar ao segundo turno nas eleições de 2022. Basta ver que o mandatário não esteve sozinho na empreitada: os deputados Eduardo Bolsonaro (SP), Filipe Barros (PR) e Bia Kicis (DF), todos do PSL, tiveram destaque no impulso ao movimento. A deputada chegou a utilizar o ataque hacker como argumento contra o comprovante de vacinação.

arte passaporte da vacina

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A campanha contra o passaporte veio a calhar para o bolsonarismo, que tem dificuldades em sobreviver sem empunhar bandeiras que empolguem seus fãs mais radicais. Um outro levantamento da FGV-DAPP, de novembro, identificou que, de agosto, quando Bolsonaro atacou as instituições como preparativo para os atos golpistas de 7 de Setembro, até outubro, quando ele se viu obrigado a moderar o discurso, sua influência nas redes despencou. As interações no Twitter caíram 25%, e no YouTube, onde Bolsonaro costumava reinar com as lives às quintas-feiras, as visualizações diminuíram para menos da metade. “A disputa em torno do passaporte da vacina vem servindo para reengajar a base de apoio ao governo”, conclui a FGV-DAPP.

MINORIA - Manifestante no Rio: contra o desejo da maioria da população brasileira -
MINORIA – Manifestante no Rio: contra o desejo da maioria da população brasileira – (Saulo Angelo/Futura Press/.)

O combustível que Bolsonaro usa para incendiar os seus radicais é uma farsa intelectual. A contraposição entre liberdade individual e direito coletivo à saúde é uma daquelas “falsas verdades” semelhantes à empregada pelo bolsonarismo ao criticar as investigações do STF sobre os atos antidemocráticos. Naquele caso, dizia-se que o indivíduo podia pregar o que quisesse, até mesmo o fechamento das instituições, pois o direito de expressão devia ser absoluto — o que não é verdade. Especialmente em uma situação de epidemia, como a atual, é necessária a imunização em massa da população como forma de preservar vidas. Quem não está vacinado põe em risco pessoas que já se vacinaram, mas que podem pegar a doença, e quem ainda não se vacinou porque não pode — ou porque são crianças ou porque têm comorbidade. “Um não vacinado por opção põe em risco um monte de gente. Ele tem a liberdade de correr o risco, mas não tem a liberdade de me colocar”, afirma o fundador e ex-presidente da Anvisa Gonzalo Vecina Neto. A pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo lembra que a política de direitos humanos prevê que, diante de uma epidemia, as garantias podem ser relativizadas. “As companhias aéreas têm direito de exigir passaporte vacinal, e os países têm o dever de exigi-lo de todo viajante”, diz. Ambos lembram que exigências do tipo existem há anos e nunca foram questionadas. Para viajar para áreas em que há febre amarela silvestre, por exemplo, o indivíduo é obrigado a comprovar que está vacinado.

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Luís Roberto Barroso, ministro presidente do STF
FIRMEZA - Barroso: mais uma vez, o STF colocou freio nos devaneios do governo – (Carlos Alves Moura/SCO-STF/Reprodução)

Esse tipo de argumento científico-­racional não cala fundo na plateia mais identificada com o presidente. Não por acaso, no Centro-­Oeste, onde a avaliação positiva de Bolsonaro é a mais alta (26%), segundo dados da Genial/Quaest, a aprovação ao certificado de vacinação é a mais baixa (58%). Em âmbito nacional, no entanto, a postura se revela de uma minoria. Dois em cada três brasileiros (65%) apoiam a exigência de vacinação para entrada em locais fechados, como mostrou pesquisa CNI/FSB divulgada na terça-feira 14. Além disso, mais de 90% são a favor das vacinas. Portanto, o apoio da população e a firmeza de instituições como o STF continuam sendo os melhores antídotos contra a política da ignorância. Infelizmente, mesmo diante de uma pilha de mais de 600 000 mortos pela Covid-19, a batalha contra o negacionismo do presidente e de alguns setores do seu governo ainda não terminou.

Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2021, edição nº 2769

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