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Brasil virou pária global, diz Celso Amorim

Para o chanceler de Itamar e Lula, o governo Bolsonaro transgride normas internacionais e, com a crise na Amazônia, dá argumentos para que ele sofra sanções

Por Denise Chrispim Marin Atualizado em 4 jun 2024, 15h49 - Publicado em 6 set 2019, 06h30
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  • Chanceler de Itamar Franco e Luiz Inácio Lula da Silva e ministro da Defesa de Dilma Rousseff, o embaixador Celso Amorim diz assistir com perplexidade, de Copacabana, onde vive, ao desmonte da política externa brasileira. Não só a do período que conduziu, tachada de “terceiro-mundista” por vários segmentos da sociedade, mas também a que vinha em gestação desde a retomada da democracia no país. Diplomata por mais de quarenta anos, o paulista radicado no Rio de Janeiro ressente-­se principalmente da relação carnal entre o Brasil e os Estados Unidos promovida pelo presidente Jair Bolsonaro, acredita que “o pior de Trump está no seu mau exemplo” e, ao fazer duras críticas à condução do governo de Nicolás Maduro, revela seu temor de que a crise da Venezuela acabe como a do Iraque de Saddam Hussein. Sobre a polêmica provocada pelos incêndios na Amazônia, Amorim se diz surpreendido pelo fato de o Brasil, antes chamado para ajudar na solução dos dilemas internacionais, agora ter se tornado um “pária global”.

    A política externa de Bolsonaro é a de Lula com o sinal trocado? Essa é uma brutal simplificação. Havia uma linha de continuidade nas políticas externas de Fernando Henrique, Collor, Sarney e Lula, que agora está sendo rompida. O atual governo acredita que soberania significa transgredir as normas internacionais. Orienta o Brasil a não se curvar à ONU, que existe para defender os elementos civilizatórios e foi desenvolvida com o apoio do Estado brasileiro. Nunca me senti mal como embaixador de nenhum dos presidentes. Hoje, sin­to-me violentado como cidadão e assim me sentiria se estivesse no Itamaraty.

    Como o senhor avalia o papel do governo diante da crise da Amazônia? Antes, o Brasil era chamado para ajudar a solucionar os problemas. Agora, o G7 se reúne para tratar do Brasil como a crise do momento. Isso é surpreendente. O país está se autorretaliando pelo isolamento, colocando-se na posição de pária global.

    A Finlândia defendeu a adoção, pela União Europeia, de barreiras ao ingresso da carne brasileira… Era previsível. Obviamente que há motivações protecionistas em alguns casos. Mas o Brasil está dando o motivo e o pretexto para essas ações. O governo não está olhando os danos que causará à economia e ao meio ambiente.

    Há risco efetivo à soberania, como alerta o governo? Não há incompatibilidade entre a defesa da Amazônia e a preservação da soberania. No governo Lula, tomamos medidas sérias para diminuir o desmatamento e aceitamos a cooperação internacional, que começou com o Fundo Amazônia, mas com projetos definidos por nós. A solução está em reconhecer que o problema é global, assumir que a responsabilidade é nacional, definir como vamos enfrentar o problema e aceitar a cooperação nos nossos termos.

    “Os governos tiveram maior ou menor aceitação das propostas americanas. Mas nenhum deles permitiu a submissão explícita. Bolsonaro chega a dizer que está apaixonado por Trump!”

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    Houve atrito diplomático desnecessário com a França? Quando Bolsonaro deixou de receber o ministro francês Jean-Yves Le Drian para cortar o cabelo, já estava jogando nessa direção. O presidente parece querer ressuscitar a Guerra da Lagosta, dos anos 1960. Além de importante mercado para os produtos brasileiros, a França tem sido grande investidora no país e é a fornecedora de tecnologia para nosso submarino de propulsão nuclear. Nossos militares têm de acordar para esse fato.

    Como vê o alinhamento Brasil-Estados Unidos? Os governos passados tiveram maior ou menor aceitação das propostas americanas. Mas nenhum deles permitiu a submissão explícita, a linha mestra do atual governo. O presidente Bolsonaro chega a dizer que está apaixonado pelo Donald Trump! Não me lembro de nenhum presidente, nem mesmo na época das fronteiras ideológicas da ditadura militar, usar expressões semelhantes.

    O senhor vê uma tentativa deliberada do governo Bolsonaro de desmontar o que foi feito na política externa do presidente Lula? Ele não quer desmontar só o governo do Lula, mas tudo o que vem desde a redemocratização, da Constituição de 1988. O Brasil trabalhava por valores civilizatórios, que envolvem o respeito aos direitos humanos, às minorias, às mulheres, aos LGBTs, às diferenças em geral, à preservação do meio ambiente. A gente vive agora uma imitação de Trump.

    O senhor atribui essa desconstrução a Bolsonaro ou a Ernesto Araújo? O chanceler tem alucinações explícitas. É obviamente uma pessoa erudita, sabe a ave-maria em tupi, os Evangelhos em grego, o que é extraordinário. Lembre-se de que Dom Quixote leu muitos livros de cavalaria e acabou confuso — se bem que eu tenha grande simpatia por Dom Quixote.

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    O chanceler parece obcecado por eliminar o marxismo cultural. O senhor deixou esses vestígios no Itamaraty? Lendo os textos dele, fiquei com a impressão de que o marxismo cultural começou antes de Karl Marx, no Iluminismo. Marx, por sinal, era um pensador superocidental, um descendente de Hegel.

    Qual sua percepção sobre Trump como presidente? O pior do Trump é seu mau exemplo. Tudo o que há de ruim — racismo, machismo, apoio à transgressão da norma, porte de arma, fim da carteira de motorista — é comum a Trump e Bolsonaro.

    E se ele não for reeleito em 2020? Aí acaba toda a estratégia do governo Bolsonaro, que não está baseada nos Estados Unidos, mas na figura de Donald Trump.

    Como o senhor, que foi embaixador na OMC, na ONU, em Londres, vê a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro para a embaixada brasileira em Washington? É um claro caso de nepotismo, que o Senado julgará. O risco maior é a consolidação de um eixo de extrema direita nas Américas, que não vou chamar de eixo do mal. Não consigo perceber o interesse do Estado nessa indicação. Parece a volta dos casamentos dinásticos.

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    Quais os prejuízos já visíveis da atual política? O Brasil abriu mão de ser economia em desenvolvimento diante da OMC, de forma gratuita, a pedido dos americanos. O presidente Bolsonaro afirmou em Washington: “Eu vim para destruir”. Não se pode dizer que ele não esteja cumprindo o prometido.

    Mas o presidente Bolsonaro recuou em várias propostas na área externa, como a intervenção na Venezuela. Ele recuou porque os militares o seguraram, mas é muito determinado. A Venezuela está sendo estrangulada pelas sanções dos Estados Unidos, que estão tratando o Nicolás Maduro como se fosse o Saddam Hussein. Não estou defendendo o Maduro, a quem critico. Mas havia um processo de negociação entre o governo e a oposição, amparado pela ONU e pela Noruega, que não foi apoiado pelo Brasil. A solução está na persuasão, na negociação. Nunca no cerco brutal, no estímulo à guerra civil. Não vejo o Maduro caindo em curto prazo.

    Como chanceler, teria reconhecido Juan Guaidó como presidente interino? Não. Isso vai completamente contra o princípio da não intervenção nos assuntos internos de outros países.

    Essa atitude poderia ter aberto a possibilidade de o Brasil atuar como um mediador? Como sempre foi. Na época em que criamos o Grupo de Amigos da Venezuela, eu falava com grande frequência com o Colin Powell (então secretário de Estado americano). O papel do Brasil sempre foi de pacificador. O presidente Fernando Henrique teve essa função no conflito entre Peru e Equador. No governo Lula, houve a solução para o conflito na Bolívia, que esteve à beira da guerra civil, para a crise política do Equador.

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    Mas Lula dava atenção especial a Hugo Chávez. As pessoas dizem que eram amigos, mas o Lula nunca passou a mão na cabeça do Chávez. Lula sempre usou sua capacidade de persuasão para apaziguar os ânimos do Chávez. Insistia que ele tinha de ser o presidente de todos os venezuelanos, que precisava manter relações normais com a Colômbia.

    “Eu não teria reconhecido Juan Guaidó como presidente interino. Isso vai contra o princípio da não intervenção nos assuntos internos de outros países”

    Mas assistia a Chávez dominando os três poderes, censurando a imprensa, perseguindo opositores. Por que não reagiu? Porque achávamos, e eu continuo achando, que a persuasão e a cooperação são melhores que o isolamento. Atrair a Venezuela para o Mercosul era uma forma de influir na Venezuela. Dizer que o Brasil era bolivariano é um absurdo. Lula nunca militarizou a política, fez um governo totalmente diferente.

    Acabou o papel de liderança do Brasil na América Latina? O Brasil se autoexcluiu de qualquer negociação.

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    Os Estados Unidos acenaram com um acordo de livre-comércio com o Brasil, sem o Mercosul. É factível? Não vai acontecer. Os americanos não atenderão a nossas demandas em acesso a mercado e eliminação de subsídios. Trump é protecionista.

    O acordo Mercosul-União Europeia foi concluído. Mas será adotado? Não defendo esse acordo. Acho que foi fechado às pressas e sob pressão, durante um cochilo do Bolsonaro, que tem aliança com os neoliberais, mas nenhum pensamento neoliberal. Depois o próprio governo, que festejou o acordo, se encarregou de bombardeá-­lo, com o tratamento que deu ao ministro francês Le Drian.

    A relação Brasil-China continua ameaçada? O leilão de internet 5G, no qual a chinesa Huawei tem interesse, será um teste do pragmatismo e da revisão ideológica do governo. Há uma grande interrogação. A China dará o grande choque mundial, que terá a ver com a tecnologia, com o modo de organizar a sociedade.

    O senhor estava ciente do pagamento de propinas ao PT por empreiteiras com obras no exterior financiadas pelo BNDES e que foi detalhado recentemente por VEJA? Jamais tomei conhecimento — muito menos participei — de qualquer ação ilegal, notadamente com vistas a vantagens financeiras ou outras, seja em favor de empresas ou partido político, seja em benefício dos governantes dos países africanos. O aprofundamento e a expansão da relação com a África foram, sim, objetivo da política externa brasileira que trouxe benefícios concretos para o país, tanto no campo econômico-comercial, com a multiplicação de exportações, quanto no campo político, com o apoio africano a vários de nossos pleitos e posições em organismos internacionais, facilmente comprováveis.

    Publicado em VEJA de 11 de setembro de 2019, edição nº 2651

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