O ex-governador do Rio, Sérgio Cabral Filho (MDB), disse que o esquema de desvio de recursos na saúde pública do Rio também envolvia religiosos. Ele citou os contratos do Estado com a Organização Social Pró-Saúde, que é administrada por padres da Igreja Católica, e o cardeal D. Orani João Tempesta, arcebispo da Arquidiocese do Rio.
“Não tenho dúvida de que deve ter havido esquema de propina com a O.S. da Igreja Católica, da Pró-Saúde. O dom Orani devia ter interesse nisso, com todo respeito ao dom Orani, mas ele tinha interesse nisso. Tinha o dom Paulo, que era padre, e tinha interesse nisso. E o Sérgio Côrtes nomeou a pessoa que era o gestor do Hospital São Francisco. Essa Pró-Saúde certamente tinha esquema de recursos que envolvia religiosos. Não tenho a menor dúvida”, afirmou.
Outro lado
Em nota, a Arquidiocese do Rio respondeu que a Igreja Católica no Rio de Janeiro e seu arcebispo “têm o único interesse que organizações sociais cumpram seus objetivos, na forma da lei, em vista do bem comum”.
Procurada no início da noite, a Pró-Saúde não respondeu sobre o depoimento de Cabral. A organização é uma das maiores entidades de gestão de serviços de saúde e administração hospitalar do País e tem sob sua responsabilidade mais de 2.068 leitos e cerca de 16 mil profissionais.
“A atuação da Pró-Saúde, entidade sem fins lucrativos, se alinha aos esforços da sociedade para o aperfeiçoamento dos serviços públicos de saúde. Como organização alicerçada na ética cristã e na vasta experiência católica de trabalho social, voltada aos mais diversos públicos, nas mais distintas realidades, a Pró-Saúde prima pela valorização da vida e pela defesa das condições essenciais para o desenvolvimento das pessoas”, diz a organização, em nota publicada no seu site.
Ex-procuradores
Cabral também disse, em depoimento ao Ministério Público Federal do Rio em 21 de fevereiro, que fez um acordo com o ex-procurador geral de Justiça do Rio, Marfan Vieira, para que este arquivasse processos relacionados a ele. Em troca, Cabral disse que atuaria para a recondução de Marfan à chefia do Ministério Público Estadual do Rio. O ex-procurador rebateu as acusações do ex-governador, afirmando não haver nexo entre os motivos alegados por Cabral e a sua nomeação.
Cabral contou que o ex-secretário da Casa Civil do Rio, Régis Fichtner, teria intermediado o acordo. Ele disse que ele e Marfan estavam brigados, e Fichtner teria atuado para resolver esse “problema”, porque existiam processos recíprocos entre eles. O procurador teria pedido ao então secretário que o reaproximasse de Cabral a fim de que, se ele fosse reeleito, o reconduzisse ao cargo de procurador-geral de Justiça.
“Eles fizeram as pazes, retiraram os processos e foi prometida a recondução”, diz a transcrição do depoimento de Cabral ao MPF.
Cabral disse que o também fez acordo com o ex-procurador de Justiça Cláudio Lopes relacionado à privatização da Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae). Neste caso, estava pendente uma investigação no MPE sobre a companhia. Lopes teria dito a Cabral que tinha condições de arquivar o processo, desde que ele se tornasse procurador-geral de Justiça.
Preso desde novembro de 2016 e já condenado a 197 anos e 11 meses de prisão, Cabral admitiu pela primeira vez em depoimento à Justiça que recebeu propina durante suas gestões como governador. A mudança de discurso ocorre após a troca de advogado – Marcio Delambert assumiu a defesa de Cabral em 3 de janeiro deste ano. Por enquanto não foi firmado acordo de delação premiada. Cabral é tratado pelo MPF como réu confesso.
Ao longo do depoimento, que foi sigiloso, o ex-governador admitiu que recebeu propina. O suborno, segundo ele, foi pago por empreiteiras, como a Queiroz Galvão e a Odebrecht, e por empresários, como Arthur Menezes Soares Filho conhecido como “Rei Arthur” e dono de empresas que mantiveram contratos milionários com o governo do Estado nas gestões de Cabral (2007-2010 e 2011-2014).
Cabral disse que definia a porcentagem que queria receber, conforme a obra, e avisava Regis Fichtner, que foi chefe da Casa Civil durante suas gestões e está preso desde 15 de fevereiro. Segundo Cabral, cabia a Fichtner, que classificou como “primeiro-ministro” de seu governo, negociar a propina com as empresas que firmavam contratos com o governo.
Defesa
O ex-procurador-geral Marfan Martins Vieira afirmou em nota que, “no dia 30 de abril de 2003, há quase dezesseis anos, portanto, ingressei com ação de responsabilidade civil por danos morais contra o então senador Sérgio Cabral Filho, em razão de ofensas por ele assacadas contra mim pela imprensa. Cerca de um ano depois, fui procurado por Regis Fitchner, que à época chefiava o gabinete do então senador, o qual me pediu que não prosseguisse na demanda contra Cabral, uma vez que o episódio causador do litígio já se achava inteiramente superado e sem consequências danosas para o ofendido. Como se tratava de processo referente a interesse exclusivamente pessoal, decidi acolher o pleito e orientei meu advogado a não prosseguir na causa.”
“A cronologia dos fatos, no entanto, é muito importante para a exata compreensão do ocorrido. Na verdade, a extinção do aludido processo ocorreu no ano de 2004, quando eu ainda ocupava a função de presidente da Associação do Ministério Público. Em realidade, meu primeiro mandato como Procurador-Geral de Justiça somente veio a ocorrer em 2005 e quem me nomeou para o cargo foi a então governadora Rosinha Garotinho. Ainda no que tange à cronologia, é relevante observar que Cabral só se tornou governador do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2007, após candidatura formalizada no ano de 2006, o que, por si só, torna inverossímil a estória de um suposto acordo de recondução celebrado em 2004, quando Cabral não era sequer candidato ao governo do Estado e eu tampouco ocupava a chefia institucional do Ministério Público.”
A defesa de Régis Fichtner respondeu que só vai se manifestar quando tiver acesso ao depoimento do ex-governador. A reportagem não localizou a defesa de Lopes.