Dentro da máxima da gestão pública de que governar é estabelecer prioridades, o Brasil tem hoje a oferecer óbvios campos de atuação, a começar pela catastrófica marca de quase meio milhão de mortos pela Covid-19. Na área econômica, é urgente definir um ritmo de retomada capaz de reduzir o desagradável número de mais de 14 milhões de desempregados. Diante de desafios desse porte, causa estupefação que o governo federal gaste no momento considerável dose de energia tentando resolver um problema que não existe: o da confiabilidade das eleições via urnas eletrônicas. Graças ao esforço do Palácio do Planalto, ganha corpo no Congresso a discussão sobre a volta do voto impresso (na verdade, sobre a impressão do voto dado no sistema atual). Parte do movimento nasceu de cismas antigas de Jair Bolsonaro, que repete a teoria de que não confia no processo porque ele não teria acusado sua vitória no primeiro turno em 2018. O capitão nunca apresentou provas dessa denúncia grave, que embute uma questão de lógica elementar: se havia mesmo um plano para roubar sua eleição, como explicar sua conquista no segundo turno?
Numa das vezes em que tratou dessa acusação, Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, lamentou que o Brasil não é mesmo um país para amadores, lembrando a famosa máxima de Tom Jobim. “Só aqui o ganhador reclama de fraude”, completou o ministro. Em sua carreira política, Bolsonaro venceu oito eleições consecutivas, sendo seis delas já no esquema de voto digital. Mas coerência nunca foi mesmo o forte do presidente, assim como as análises precisas sobre eventos importantes ocorridos na história do Brasil. Fraudes existiam em abundância no passado das velhas cédulas de papel, problema que foi eliminado com as urnas eletrônicas, cuja confiabilidade é constantemente avalizada por auditorias internas e organismos internacionais. “É como voltar aos tempos do orelhão”, diz o ministro Barroso, diante da ameaça de retrocesso.
Essa insistência dos bolsonaristas em praticar o terraplanismo eleitoral serve como tentativa diversionista em meio à atual crise de popularidade do governo e emula a tática do americano Donald Trump, que jura ter sido roubado nas eleições dos Estados Unidos (detalhe: lá ainda se utilizam cédulas). Seria uma bravata sem maiores consequências caso não servisse de combustível para movimentos antidemocráticos como o dos bárbaros que invadiram o Capitólio em janeiro. Não por acaso, insuflados pelo seu líder, os bolsonaristas mais radicais ameaçam armar um circo semelhante, avisando que não vão reconhecer o resultado do pleito de 2022 sem a impressão do voto. “Lula só ganha na fraude”, afirmou o presidente, referindo-se ao petista, que divide com ele hoje o favoritismo nas pesquisas. Não bastasse o custo estimado em 2 bilhões de reais para a adaptação do atual sistema, a medida abre uma perigosa brecha para a judicialização das eleições, com o potencial surgimento de hordas de derrotados exigindo nos tribunais a recontagem dos votos. Em meio a tantos problemas da atualidade, tudo de que o Brasil não precisa é ser assombrado por fantasmas do passado.
Publicado em VEJA de 16 de junho de 2021, edição nº 2742