Caseiro chantageia ex-mulher de Bolsonaro e diz ter provas de rachadinha
Em mensagens a que VEJA teve acesso, ex-funcionário faz ameaças de morte e exige R$ 200 mil para não revelar o que sabe sobre esquema de corrupção
Escondido em algum lugar da periferia do Rio de Janeiro, Marcelo Nogueira dos Santos, que trabalhou como assessor do então deputado estadual Flávio Bolsonaro entre 2003 e 2007 e até o ano passado como caseiro da advogada Ana Cristina Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro, afirma ter gravações de áudio e vídeo que comprovariam a prática do notório esquema da rachadinha, o escândalo que ronda a família do Presidente da República há quatro anos. As imagens mostrariam Ana Cristina contabilizando o dinheiro arrecadado com o recolhimento de parte dos salários dos funcionários do gabinete do filho Zero Um e os áudios reuniriam conversas esclarecedoras sobre a real participação de alguns dos principais personagens envolvidos na trama. Marcelo não revela sua exata localização, diz temer por sua vida e afirma que o material que guarda é um seguro de que nada de ruim vai lhe acontecer. Por fim, garante que tudo será revelado no momento oportuno — e, quando isso acontecer, as consequências serão extremamente embaraçosas para todo o clã Bolsonaro.
Em Brasília, onde mora atualmente, Ana Cristina Valle está assustada com o que diz o seu ex-funcionário e com medo do que ele pode vir a fazer. Marcelo está exigindo dinheiro para não revelar o que seria a prova do envolvimento dela no escândalo da rachadinha. A chantagem começou no ano passado, depois que o caseiro se desentendeu com a ex-patroa e deixou o emprego, foi crescendo em intensidade no segundo semestre e atingiu o ápice há algumas semanas, quando as ameaças resvalaram no filho e no próprio presidente da República. VEJA teve acesso a um conjunto de mensagens que o caseiro enviou à família Bolsonaro nos últimos meses. Numa delas, ele pede 200 000 reais para não contar o que sabe às autoridades. Em outra, deixa claro que, se não for atendido, está disposto a chegar às últimas consequências, o que significaria tornar público tudo que viu, ouviu e participou nos vinte anos em que serviu ao clã. Em uma terceira, fala explicitamente que, se as negociações não evoluírem, a desavença vai terminar em morte.
Em vários papéis diferentes, o caseiro acompanhou de perto algumas passagens importantes da família presidencial. Em 2002, atuou como cabo eleitoral na campanha de Flávio Bolsonaro. Na sequência, foi contratado como assessor do gabinete do deputado, onde permaneceu lotado por cinco anos ininterruptos. Em 2008, passou a trabalhar exclusivamente com Ana Cristina, fazendo serviços domésticos e auxiliando na criação de Jair Renan, o filho mais novo do presidente, e testemunhando todo o conturbado processo de separação do casal. No ano passado, em entrevista ao site Metrópoles, admitiu ter participado da rachadinha, devolvendo parte do seu salário durante o período em que assessorou o filho do presidente, e apontou a ex-patroa como a mentora e principal beneficiária do esquema. Segundo ele, os funcionários repassavam à advogada entre 80% e 90% dos seus vencimentos. Na época, ela ainda era casada com Jair Bolsonaro. Ou seja, o esquema, da maneira como narra o caseiro, também teria favorecido indiretamente o atual presidente.
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“VOU MATAR ELA”
Depois de pedir 200 000 reais para não revelar segredos que diz guardar, Marcelo Nogueira, ex-assessor de gabinete de Flávio Bolsonaro e ex-caseiro da família, gravou uma mensagem de áudio dizendo que iria matar a ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro
“Isso agora é uma briga que só vai terminar com a morte dela, com a minha morte ou então o dia que eu ver ela totalmente destruída. Enquanto nada disso acontecer, não sossego. Eu vou catucar, eu vou cavucar o quanto puder, mas não se preocupa que não vai envolver mais ninguém. Não precisa se preocupar com isso, que isso aí já tá uma coisa já acertada. Agora tudo que tenho em tela dela eu vou expor. Ano que vem vai sair tudo. Eu vou expor todos os segredos que tenho dela sem prejudicar ninguém politicamente, mas os segredos dela vão ser todos expostos, vão ser todos reunidos, todos narrados por mim. Nós vamos fazer um trabalho muito bem feito, entendeu? De bastante impacto. Se ela se candidatar, nós vamos lançar na campanha, entendeu? Então deixa ela lá quieta pensando que eu tô morto, pensando que tudo caiu no esquecimento. E se eu não conseguir abalar a estrutura dela, se isso não acontecer, como te falei, tenho que acabar com essa briga. Eu vou caçar ela no inferno, eu vou acabar com a vida dela. Nem que eu vá parar na cadeia, mas eu vou acabar com a vida dela. Que eu vou matar ela eu vou.”
Marcelo ainda não mostrou as provas que diz possuir, mas os áudios e mensagens a que VEJA teve acesso não deixam dúvidas da chantagem. Em agosto do ano passado, Marcelo e Ana Cristina se falavam por um aplicativo. O caseiro já havia deixado o emprego, reclamava o pagamento de direitos trabalhistas e supostos danos morais e propunha uma negociação para encerrar o litígio, sem dizer exatamente do que se tratava, mas insinuando que o contrário disso resultaria na divulgação de fatos que poderiam gerar enormes constrangimentos à família. Ana Cristina perguntou quais eram as garantias de que o acordo seria cumprido. Marcelo diz que a garantia era sua palavra e o pagamento de 200 000 reais para “começar”. Demonstrando surpresa, a advogada pergunta o porquê daquele valor tão elevado. O caseiro responde reproduzindo uma mensagem que incluía insinuações de que ele poderia implicá-la em certos eventos. A advogada percebeu que estava sendo alvo de extorsão, encerrou o diálogo e não atendeu mais às ligações do rapaz. A escalada de ameaças estava apenas no início.
Diante da recusa de Ana Cristina em atender às ligações, o ex-funcionário passou a enviar recados aos amigos da advogada. Em áudio, ele alertou a ex-patroa que estava conversando com políticos sobre o caso, negociando com o Ministério Público um depoimento e mantendo contato com a imprensa para divulgar as denúncias. “Já tô aqui fechando já com o Jornal Nacional porque não posso fazer nada escondido não. Até Ministério Público eu já falei. Mandei meu advogado falar que eu só presto queixa se for com a imprensa, entendeu? Mas primeiro estou entrando em contato com o senador pra pedir minha proteção.” Na sequência, Marcelo deixa claro que o assunto gira mesmo em torno da rachadinha e que suas revelações vão implicar Flávio Bolsonaro e o ex-policial Fabrício Queiroz, ex-chefe do gabinete do então deputado, além de pôr em perigo a vida de Ana Cristina. “E agora, com esse negócio aí (que) o Flávio se livrou, da coisa do Queiroz, eles vão cair de pau em cima disso. Pra poder ferrar com eles. Então, não quero nem saber. E esse momento pra mim será o ideal. Infelizmente ela vai estar correndo um grande risco de vida também.” A mensagem foi enviada quatro dias depois de o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anular o processo que investigava o senador e seu antigo chefe de gabinete.
OUÇA O ÁUDIO:
“ELES VÃO CAIR DE PAU”
Em outra mensagem de áudio, o caseiro diz que estaria negociando seu ingresso no programa de proteção a testemunhas e que suas informações se tornaram valiosas depois da decisão da Justiça que anulou o processo que investigava o senador Flávio Bolsonaro
“Eu também já cansei. Fala logo que não vai fazer nada para eu resolver minha vida. Ficar me enrolando, ficar me levando em banho-maria, isso não vai rolar não, porque minha situação tá apertada aqui e eu tenho que resolver isso, entendeu? Então dá logo um ponto-final que eu resolvo, porque eu também já tô cansado, eu não posso aguardar mais não. E já tô aqui correndo atrás, fechando as coisa, entendeu? Já tô aqui fechando com o Jornal Nacional porque não posso fazer nada escondido não. Até com Ministério Público eu já falei, mandei meu advogado falar que eu só presto queixa se for com a imprensa, entendeu? Mas primeiro eu tô entrando em contato com o senador pra poder pedir proteção à testemunha. Estou ficando sem dinheiro, não tô tendo como sobreviver mais, então preciso dar um rumo nisso aí, entendeu? Tá meio difícil, tá complicado, sinto muito. E agora, minha filha, com esse negócio aí (que) o Flávio se livrou da coisa do Queiroz lá, eles vão cair de pau em cima disso aí, né? Pra poder ferrar com eles. Então, não quero nem saber. E esse momento pra mim será o ideal e coitada dela, né? Infelizmente ela vai estar correndo um grande risco de vida também.”
Em outro áudio, o caseiro aparentemente recua da intenção de “ferrar” Flávio e Queiroz e concentra as ameaças na ex-mulher do presidente: “Eu vou expor todos os segredos que tenho dela sem prejudicar ninguém politicamente. Nós vamos fazer um trabalho muito bem feito, entendeu? Nós vamos lançar na campanha, entendeu? Então deixa ela lá quieta pensando que eu tô morto, pensando que tudo caiu no esquecimento”. E conclui com uma afirmação de extrema gravidade: “Se não conseguir abalar a estrutura dela, tenho que acabar essa briga. Vou caçar ela no inferno, vou acabar com a vida dela. Nem que eu vá parar na cadeia, mas vou acabar com a vida dela. Que eu vou matar ela eu vou”. Ao ouvir essa mensagem, Ana Cristina procurou a polícia, chegou a conversar com um delegado sobre as ameaças que estava sofrendo, mas, aconselhada pelo advogado da família, desistiu de prestar queixa contra o ex-funcionário.
Nesses diálogos com amigos através de um aplicativo, hoje em poder de Ana Cristina, Marcelo também fez várias ameaças. “Estou seguindo todos os passos dela. Em breve estarei indo a Brasília”, “Não estou sozinho nessa, ela fez vários inimigos”, “Estou me organizando pra ir atrás e acabar com a vida dela, nem que seja a última coisa que faço na vida”, “Vou morrer, mas entro para a história”. Na mensagem mais recente, ele incluiu Jair Renan, o filho do presidente: “Eu bem que poderia armar pra matar a mãe, o pai ou o filho daquela desgraçada”. E, mais uma vez, insinua que seus segredos podem comprometer o presidente: “Meu ódio maior é ela ter acabado com a minha vida e por isso vai acabar com tudo que o presidente construiu. Ele não merecia isso”.
Em janeiro, aconteceu um episódio que mostra a tensão provocada pelas ameaças do caseiro. Era tarde da noite. Jair Renan viu o que parecia ser o vulto de um homem nos fundos da casa. Ele acionou o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o órgão que cuida da segurança do presidente, que enviou ao local uma equipe de agentes. Renan pensou que poderia ser Marcelo ou alguém ligado a ele. A residência foi vasculhada, mas não se encontrou vestígio algum do suposto invasor.
Oito dias depois desse episódio, Marcelo publicou um post enigmático nas redes sociais: “Hoje acordei tão bem que estou com medo do que serei capaz de fazer, quem puder se proteger, me ajudaria a ficar com menos uma dívida a acertar. Hoje começa o meu 2022, ano de lançamento do canal Segura a Verdade. Voltei”. Depois, publicou uma foto da fachada de um prédio comercial no centro do Rio, acompanhada de uma frase também enigmática: “Os bastidores da grana suja, assim começará uma longa e interessante história financeira. Lançamento em breve”. No endereço, funcionou o escritório de advocacia de Ana Cristina. Era para lá, de acordo com o caseiro, que a ex-mulher do presidente levava o dinheiro arrecadado com a rachadinha — e também onde teriam sido gravadas as tais imagens que provariam a existência do esquema. Em entrevista a VEJA, Ana Cristina disse que as chantagens são inócuas, que está com medo das ameaças e desafiou o ex-funcionário a provar o que diz. O objetivo de tudo, segundo ela, é atingir seu ex-marido (veja a entrevista).
VEJA também falou com Marcelo Nogueira. O caseiro reafirmou que dispõe das provas, está aguardando o “momento estratégico” para apresentá-las e que seu objetivo é inviabilizar a campanha política da ex-patroa, que pretende disputar uma vaga de deputada distrital por Brasília. Ele, no entanto, admite que suas denúncias podem respingar nos filhos e até no próprio presidente da República, embora ressalte que Bolsonaro é absolutamente inocente nesse caso. “A Cristina era a cabeça de tudo, a rainha da rachadinha”, disse. Se o caseiro realmente tiver as provas que afirma, as investigações, atualmente paralisadas, podem ganhar tração. O problema é que, ao exigir pagamento e ameaçar a família do presidente da República, Marcelo está cometendo dois crimes. Extorsão e ameaça de morte, que podem render até dez anos de prisão. Ele nega que esteja chantageando a ex-patroa. “Se eu tivesse que chantagear, não seria por essa mixaria. Meus áudios, meus vídeos certamente valem muita grana. Mas eu não sou um desses.” Sobre o pedido de 200 000 reais, o caseiro explica que o valor se refere a direitos trabalhistas que lhe são devidos. Sobre as ameaças, diz que elas nunca existiram. “Vou ameaçar ela pra quê? Ela sabe tudo que eu tenho”, completou. As evidências mostram o contrário.
A rachadinha é um fantasma que assombra Bolsonaro desde o início do governo. Analistas afirmam que o caso está na raiz de muitas ações controversas do presidente. No primeiro semestre de 2020, por exemplo, o ex-capitão estava preocupado com um boato que correu Brasília. Promotores teriam reunido provas irrefutáveis de que Flávio embolsou os salários dos funcionários, ele seria acusado formalmente pelo crime e sua prisão, decretada. Perplexo, o presidente não hesitou em pedir ajuda a um congressista que, apesar de adversário figadal, tinha contatos importantes na Justiça fluminense. O parlamentar descobriu, muito antes de ser anunciado publicamente, que o filho Zero Um seria realmente acusado, mas não havia pedido de prisão. Alívio momentâneo. Muitas idas e vindas ainda ocorreriam nesse processo (veja o quadro).
“Tudo isso é parte de mais um plano para envolver o presidente e a família dele num escândalo que não existe. Está absolutamente claro que estão usando esse moço para extorquir e ameaçar com objetivos políticos”, diz Frederick Wassef, advogado do presidente da República e dos filhos Flávio e Renan.
Embora tenha perdido força com as últimas decisões da Justiça, o caso ainda não acabou. Na quarta-feira 4, o Tribunal do Rio de Janeiro começou a julgar um recurso sigiloso do Ministério Público que pede a quebra dos sigilos bancário e fiscal de 37 pessoas — entre elas Flávio Bolsonaro, Ana Cristina, Fabrício Queiroz e Marcelo Nogueira. É mais uma tentativa do MP de dar sequência à investigação da rachadinha, anulada no ano passado por questões técnicas, só que agora no bojo de um processo que apura o crime de improbidade administrativa. Os promotores sabem que a chance de sucesso dessa nova ação é remota, mas resolveram tentar assim mesmo. Em um dos áudios enviados à família Bolsonaro, o caseiro disse que estava tentando ingressar no programa de proteção a testemunhas. Se ele conseguir e, de fato, entregar o que anuncia, chantagens e ameaças podem ser apenas o penúltimo capítulo de uma história explosiva.
Publicado em VEJA de 11 de maio de 2022, edição nº 2788