Chefia de banco e indenização: Dilma se movimenta para remodelar biografia
Encarnando o papel de vítima de um 'golpe da direita', a ex-presidente reforça no governo Lula a imagem de política perseguida
Lula já deixou claro que uma das prioridades de seu mandato é revisar a história. Há dois anos, o então ex-presidente figurava como personagem principal de um capítulo sombrio da política brasileira. As investigações da Operação Lava-Jato demonstraram que, durante os governos petistas, funcionou na Petrobras um enorme esquema de corrupção. Lula foi condenado, preso e banido da vida pública. Erros processuais, como se sabe, acabaram provocando uma reviravolta no caso com a anulação das sentenças. Na nova versão desse episódio difundida pelos petistas, o atual presidente foi inocentado pela Justiça depois de enfrentar uma conspiração. Nenhuma das duas afirmações é verdadeira, mas essa é a narrativa que se ouve insistentemente desde então. A vitória eleitoral no ano passado mostrou que a estratégia foi bem-sucedida, a ponto de estimular outros personagens do partido a tentar remodelar suas biografias. Dilma Rousseff, por exemplo.
A ex-presidente teve o mandato cassado em 2016 por um processo de impeachment conduzido pelo, à época, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski. Após as eleições de outubro, ela passou a comparecer a eventos oficiais ao lado de Lula, que já afirmou diversas vezes desde que assumiu o governo que a petista foi vítima de um “golpe da direita”. Para reparar a “injustiça”, ele fez circular a informação de que pretende nomeá-la para dirigir um banco no exterior. Para reforçar a imagem de perseguida, ela pretende pedir a revisão de um processo que tramitou na Comissão de Anistia do governo federal, no qual solicita o pagamento de uma pensão mensal por supostos prejuízos profissionais sofridos durante a ditadura militar. A indenização foi negada durante o governo Bolsonaro. Por isso, além da questão financeira, a ação abrirá à ex-presidente um espaço próprio para que ela participe do debate político, num ambiente que lhe é totalmente favorável.
Na década de 70, Dilma militou numa organização de extrema esquerda, foi presa e torturada. Em 2002, ela ingressou na Comissão de Anistia com um pedido de reparação de perdas profissionais que teve durante esse período. O processo ficou parado durante os governos petistas e só foi julgado e indeferido em abril do ano passado. O colegiado alegou que a ex-presidente teve sua questão funcional avaliada pelo Rio Grande do Sul e a comissão não poderia funcionar como instância recursal. Além disso, Dilma já havia sido contemplada com indenizações solicitadas em processos que tramitaram em Minas Gerais (30 000 reais), no Rio de Janeiro (20 000 reais) e em São Paulo (22 000 reais). Os valores foram pagos como compensação pelos danos psicológicos e físicos sofridos nas prisões por onde ela passou. O pedido foi negado por unanimidade. No recurso que deve apresentar à comissão solicitando a revisão da decisão, Dilma vai rebater essa tese.
A ex-presidente argumenta que, ao ser presa, foi obrigada a se afastar da Fundação de Estatística do Rio Grande do Sul, onde exercia o cargo de assistente técnica. Conseguiu ser reintegrada na década de 90, recebeu o reconhecimento da condição de anistiada, mas não teve sucesso em receber os salários e benefícios atrasados a que julgava ter direito. É isso o que ela cobra agora do governo federal. “Entendemos que a comissão nacional não poderia funcionar como instância de recurso. Se ela conseguiu no estado gaúcho, é lá que deve recorrer. Mencionamos as outras anistias, nos demais estados, porque entendemos que ela acumulou indevidamente, mas o pleito é sobre a melhora do rendimento mensal, e isso não é de nossa competência”, disse a VEJA João Henrique Nascimento de Freitas, que presidiu a Comissão de Anistia durante o governo Bolsonaro. Pelas contas do órgão, se o pedido de Dilma Rousseff fosse aceito, os salários e benefícios corrigidos monetariamente custariam 7,5 milhões de reais aos cofres públicos. “As indenizações estaduais deferiram os processos nos quais as pessoas provavam que haviam sido torturadas. Isso não tinha nada a ver com a questão do prejuízo funcional, que foi o que apresentamos no âmbito federal. Fizemos apenas menção da tortura que ela sofreu e que é conhecida pelo mundo inteiro”, afirma a advogada Paula Febrot, que representa a ex-presidente.
Dilma não deve enfrentar dificuldades em ter seu recurso aceito. Em entrevista a VEJA, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, garantiu que o processo será revisto, caso comprovados algum tipo de ilegalidade ou falhas na condução. “Todo o ato vil, de afronta ao Estado democrático de direito e à Constituição, como agente público que agora sou, tenho o dever de rever”, disse ele. A nova presidente da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida, anunciou que pode rever cerca de 12 000 processos que foram negados ou simplesmente ficaram parados durante o governo Bolsonaro. “O governo anterior transformou a comissão em uma plataforma de propaganda política favorável à ditadura, negando o golpe de 64, a ditadura e a perseguição política”, afirmou.
Independentemente do que vier a decidir a Comissão de Anistia, a Justiça Federal reconheceu no início do mês a condição de anistiada de Dilma e condenou a União a pagar uma indenização de 400 000 reais à ex-presidente. Ainda cabe recurso. Na semana passada, em entrevista à CNN, Lula confirmou a intenção do governo em indicar Dilma para o comando do Novo Banco de Desenvolvimento, conhecido como Banco dos Brics, bloco que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, com sede em Xangai. “A Dilma é uma mulher extraordinária, é uma pessoa digna, de muito respeito. E o PT adora ela. Junto à militância do PT ela é muito querida. E ela é muito competente tecnicamente. Então, se ela for presidente do Banco dos Brics, será maravilhoso para os Brics e para o Brasil”, disse o presidente. Há, no entanto, um empecilho a ser superado. O mandato do atual presidente do banco, o brasileiro Marcos Troyjo, vai até 2025. Ele precisaria renunciar para dar lugar à petista, o que não é considerado como um grande problema.
De todas as narrativas que o PT pretende construir, a mais desafiadora certamente será a que tem como personagem José Dirceu. Condenado a sete anos de prisão por corrupção no escândalo do mensalão e a outros quarenta no petrolão, não se pode alegar que o ex-ministro foi alvo de perseguição judicial (o processo do mensalão, por exemplo, foi julgado pelo STF). Ex-braço direito de Lula, ele já cumpriu parte de sua pena em um dos casos, mas ainda pode voltar à prisão a qualquer momento devido às ações que ainda estão pendentes na Justiça. Por causa disso, Dirceu praticamente se isolou nos últimos dez anos. Na campanha presidencial, atuou com discrição. Na festa da posse, estava no gramado da Esplanada misturado a outros milhares de manifestantes. Há duas semanas, no aniversário do PT, já ocupava o mesmo palco que o presidente e mereceu até uma citação especial: “Companheiro Zé Dirceu, quero agradecer a você, porque eu sei o quanto você foi solidário ao que eu passei”, disse Lula.
Apesar das provas e das condenações, o presidente da República nunca admitiu que o mensalão era um esquema de corrupção. Também nunca admitiu que os petistas estiveram no comando da estrutura que desviou quase 50 bilhões de reais dos cofres da Petrobras. Dirceu, embora condenado e preso, igualmente nunca reconheceu a sua participação nos crimes. Em uma entrevista recente, o ex-ministro rompeu o silêncio e falou sobre a similaridade entre o caso dele e o de Dilma Rousseff: “Certas coisas não se podem apagar. Houve um golpe, a Dilma jamais violou a Constituição. Eu, por exemplo, fui condenado no chamado mensalão, que nunca existiu”, afirmou. É um belíssimo resumo para tentar reescrever a história. A questão, como disse o ex-ministro, é que não se pode apagar certas coisas — por mais que se queira.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2023, edição nº 2830