A selva político-partidária brasileira, com 33 legendas registradas no Tribunal Superior Eleitoral, deve em breve perder duas delas, importantes, mas ganhar uma outra, gigante: a que sairá da fusão entre o Democratas e o Partido Social Liberal, que terá a maior bancada da Câmara (82 deputados, quase trinta a mais que o segundo colocado PT, com 53) e perto de meio bilhão de reais em dinheiro público para financiar o seu jogo político em 2022. Resultante do casamento entre um partido oriundo da ditadura, o DEM (herdeiro da Arena), e outro anabolizado pelo bolsonarismo, o PSL, a nova agremiação, se confirmada, surgirá como alternativa a eleitores de direita e centro-direita a desiludidos com Jair Bolsonaro, mas que ainda não se identificaram com as alternativas colocadas para a eleição presidencial. Segundo pesquisa Datafolha feita entre os dias 13 e 15 de setembro, 26% das pessoas que votaram em 2018 no atual presidente o rejeitariam no próximo ano e 66% delas não querem nem ouvir falar do ex-presidente Lula, por ora o favorito.
Com um movimento dessa envergadura na véspera do principal processo eleitoral brasileiro, a nova sigla desponta como uma importante peça no xadrez ainda em construção da disputa pela Presidência. Antes de a fusão se concretizar, o PSL tem como presidenciável o apresentador José Luiz Datena (4 pontos na pesquisa), enquanto o DEM trabalha a candidatura do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (entre 3 e 4 pontos). Mas, diante dos flertes de Gilberto Kassab para roubar Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e colocá-lo como cabeça de chapa ao Palácio do Planalto pelo PSD, o presidente do Senado começa a ser tratado como o “plano A” da futura sigla — a expectativa dos caciques é que o patamar da nova legenda o convença a ficar. Já Datena, que passou por DEM e MDB sem entrar nas disputas de 2018 e 2020, diz ter ido para o PSL em julho deste ano com a garantia de concorrer à Presidência. Se o partido recuar, o apresentador, que acha Pacheco e Mandetta apenas bons vices, diz não ver motivo para seguir na sigla e concorrer ao Senado ou governo de São Paulo. “Pelo PSL, com ou sem fusão, só sou candidato a presidente. Se não me quiserem, posso ajudar em uma chapa que acredito que pode vencer, como a do Ciro Gomes”, diz o jornalista, sondado para ser vice no PDT.
Mesmo com eventuais defecções, como a saída do instável Datena, o casamento entre as duas legendas é o que se pode chamar de “ganha-ganha”. O PSL entra com a condição de novo-rico que passou a ostentar após ser inflado pelo furacão bolsonarista de 2018, e o DEM — que vivia um encolhimento gradativo (foi de 105 deputados em 1998 para 29 na última eleição) — adquire maior relevância e empresta os seus nomes com mais peso político, além da capilaridade da legenda, que tem cinco vezes o número de prefeitos do aliado (veja o quadro abaixo). “O DEM tem quadros qualificados, propicia muito mais alternativas que o PSL”, afirma o deputado Luciano Bivar (PE), que preside o PSL. Os mandachuvas que comandam a negociação ressaltam também as afinidades programáticas, como a defesa do liberalismo econômico, que embalou o discurso de Bolsonaro, mas que foi abandonada por ele. Citam ainda a necessidade de adaptação às novas regras, sobretudo o veto às coligações proporcionais, ponto sensível na eleição de deputados federais, que servem como base para a distribuição de dinheiro e tempo de propaganda na TV.
Prevista para se desenrolar entre os partidos até outubro, com cerca de três meses para aprovação no TSE, a fusão deu o seu primeiro passo formal na terça 21 com a aprovação, por unanimidade na Executiva do DEM, da convocação de uma convenção no próximo mês. As negociações caminham para que Bivar presida a sigla, com ACM Neto, hoje cacique-mor do DEM, como secretário-geral. A operação é conduzida por homens de confiança da dupla, como o vice-presidente do PSL, Antonio Rueda, e o líder democrata na Câmara, Efraim Filho (PB). “Juntos, podemos ter papel de protagonismo, com a perspectiva de eleger o maior número de governadores e manter a maior bancada”, diz Efraim.
A remoção da identificação com o bolsonarismo é um dos desafios da fusão. O nome e o número da legenda que nascerá serão decididos com base em pesquisas, mas uma coisa é certa: a aposentadoria do 17 do PSL, que se tornou um símbolo bolsonarista. O primeiro sinal mais claro da fusão veio em uma nota conjunta dos dois partidos contra as manifestações golpistas protagonizadas pelo presidente no dia 7 de setembro. O que fazer com os apoiadores dele, no entanto, é um dos nós a ser desatados. Espera-se que os deputados dessa ala do PSL — cerca de metade da bancada, com nomes como Eduardo Bolsonaro (SP), Carla Zambelli (SP) e Bia Kicis (DF) — acompanhem o capitão em seu novo destino partidário, ainda incerto. “Não faz sentido os bolsonaristas seguirem no projeto”, avisa o deputado Júnior Bozzella (SP), vice-presidente do PSL. No DEM, também há aliados do presidente, como os ministros Onyx Lorenzoni (Trabalho) e Tereza Cristina (Agricultura) e parlamentares como o senador Marcos Rogério (RO), um dos expoentes da tropa de choque governista na CPI da Pandemia. Pré-candidato ao governo do Rio Grande do Sul, Onyx pretende dar palanque ao presidente e coloca isso como condição para a sua permanência — que é vista com bons olhos por parte do DEM por se tratar de um “quadro histórico”. Tereza pode concorrer ao governo de Mato Grosso do Sul. Ambos votaram favoravelmente à convenção. Rogério, dizem aliados, está inclinado a permanecer. Também há entraves locais a ser superados. Em São Paulo, por exemplo, há no DEM entusiastas da candidatura do vice-governador, Rodrigo Garcia, recém-saído do partido rumo ao PSDB, e outros que preferem atrair o ex-governador Geraldo Alckmin. Já no Rio, o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM), ligado ao pastor Silas Malafaia, e o prefeito de Belford Roxo, Waguinho, presidente do PSL fluminense, resistem a uma união.
Superados os percalços, é certo que a fusão mexerá com a eleição, principalmente por abrir uma via mais à direita, mas sem Bolsonaro. “O potencial passa pelo fato de que o PSL, apesar de ter se associado a Bolsonaro, atraiu um eleitorado que não é necessariamente bolsonarista”, avalia Rui Tavares Maluf, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo — um exemplo, cita, são os apoiadores da Lava-Jato. Outro ponto, diz, é que a fusão amplifica o potencial do DEM, que já se mostrou muito viável eleitoralmente, mas nunca emplacou um projeto nacional. O impacto será maior pelo fato de que, com a disputa polarizada entre esquerda e direita, ninguém conseguiu fazer deslanchar por ora uma alternativa viável em meio a vários nomes na praça. Falta muito para 2022 e a operação DEM-PSL chega cheia de ambições e de dinheiro, podendo congestionar ainda mais o já rarefeito espaço do centro político.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757