Como a vacina contra a Covid-19 entrou na queda de braço da política
O Brasil é o único país em que autoridades, com destaque para o presidente, criam polêmica na reta final de desenvolvimento do imunizante
O coronavírus surgiu na China e é de lá que começam a vir também algumas das informações mais alvissareiras sobre a reta final de produção de uma vacina eficaz contra a Covid-19. Nos últimos dias, uma pesquisa em curso na nação asiática saltou à frente na corrida que se inicia a partir do gigantesco esforço planetário para encontrar um imunizante em prazo recorde. Trata-se de uma notícia especialmente bem-vinda ao Brasil por dois motivos, o mais óbvio deles o fato de que o país continua sendo um dos mais afetados pela pandemia. O segundo ponto a ser comemorado é que a vacina em questão, a CoronaVac, da biofarmacêutica Sinovac, vem sendo desenvolvida junto com o Instituto Butantan, de São Paulo. Em setembro, o governador do estado, João Doria (PSDB), assinou um termo de compromisso com a Sinovac para o fornecimento de 46 milhões de doses do medicamento. A parceria é fundamental no momento em que há uma disputa mundial junto aos fabricantes pela primazia na distribuição futura de um produto do tipo.
A aposta do governo paulista vem se revelando certeira. Uma das onze vacinas no mundo que se encontram na chamada fase 3, último estágio antes da aprovação, a CoronaVac chegou até aqui sem nenhum grande atropelo. O imunizante da inglesa Oxford e o da americana Johnson & Johnson encontram-se também em estágio bem avançado, mas já registraram percalços no meio do caminho, a ponto de os programas terem sido paralisados, ainda que por um curto período. Testada em 9 000 pessoas no Brasil, número maior de voluntários do que o das vacinas de Oxford e da Johnson, a CoronaVac produziu anticorpos em 90% dos casos, apresentando efeitos colaterais leves em 35% delas (dores de cabeça e no local da aplicação). Falta ainda ministrar a CoronaVac em 4 000 voluntários para chegar ao total de 13 000 testes, número considerado ideal. Mesmo assim, os técnicos do Butantan já a consideram segura. “Não há dúvida a respeito disso”, afirma Dimas Covas, diretor do instituto. Vencida essa primeira grande prova de fogo, virá uma mais importante em seguida: a do cálculo da taxa de eficácia. De nada adianta a vacina produzir anticorpos se eles não conseguirem frear a contaminação em uma quantidade relevante de casos. Pela experiência do Butantan em imunizantes que utilizam o mesmo método, no entanto, será uma surpresa enorme caso ele fracasse lá na frente.
Em mais uma prova de que o Brasil não é mesmo para amadores, em vez de virar motivo de celebração, a chegada à reta final da vacina causou um enorme stress político. A nação, que já chocou o mundo pela tragédia humanitária de mortes acumuladas por coronavírus, virou também a única no planeta em que autoridades batem boca diante dos avanços significativos de um imunizante. As notícias relacionadas à CoronaVac atearam fogo de vez na guerra declarada entre o presidente Jair Bolsonaro e João Doria, que se colocaram de lados opostos desde o início da pandemia. Entre erros e acertos, o saldo do combate à doença no âmbito estadual é politicamente positivo para a imagem do governador. Enquanto isso, Bolsonaro virou exemplo global de negacionismo diante da doença. O estopim do mais recente confronto entre os dois foi aceso na última terça, 20, quando o Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, comprometeu-se a investir 1,9 bilhão de reais na CoronaVac para distribuí-la pelo SUS. O acordo foi firmado em reunião virtual com 24 governadores, incluindo Doria e dois líderes do Palácio do Planalto junto ao Congresso — o deputado Ricardo Barros e o senador Eduardo Gomes. Em menos de 24 horas, acabou desautorizado por Bolsonaro. “Não compraremos a vacina da China”, afirmou o presidente nas redes sociais. Pego também de surpresa com a reviravolta no caso, o político tucano respondeu: “Não é ideologia, não é política, não é processo eleitoral que salva, é a vacina”. Outros governadores presentes ao encontro com Pazuello também criticaram duramente o presidente. “Adquirir as vacinas que primeiro estiverem à disposição deve ser a meta primordial”, afirmou Renato Casagrande (PSB), governador do Espírito Santo, Em um país que já enterrou mais de 155 000 pessoas por causa da Covid-19, é uma aberração que algo tão óbvio tenha de ser dito a esta altura da pandemia.
Antes de desautorizar publicamente o Ministro da Saúde, Bolsonaro já havia dado vários sinais de desconforto com relação à parceria de Doria com os chineses. Até a semana passada, sob seu conhecido radicalismo ideológico, o capitão resistia à possibilidade de a porta de saída para a pandemia vir da China. Não só isso. Estava convicto de que tratar o projeto de um antídoto sino-paulista como uma realidade daria robustez ao palanque de Doria, seu inimigo político e pretenso candidato ao Planalto em 2022. Para evitar o rufar de bumbos do lado adversário, o estudo elaborado pelo Butantan era assunto proibido no Ministério da Saúde até pouco tempo atrás, ordem confirmada à reportagem de VEJA por dois auxiliares do titular da pasta. No outro extremo da trincheira, Doria declarou que o imunizante começaria a ser aplicado na população em dezembro, uma expectativa não compartilhada pelos técnicos que acompanham de perto os trabalhos. Eles consideram esse prazo irreal e não levam a sério nenhuma promessa anterior a fevereiro. Fora os milhares de voluntários que precisam ser testados e a comprovação do índice de eficácia, o produto ainda precisa passar pelo crivo da burocracia da Anvisa, algo que, na hipótese mais otimista, não vai ocorrer em menos de quinze dias. Arroubos de confiança à parte, caso tudo dê certo daqui para a frente, o horizonte do início de 2021 está longe de significar algum fracasso. Pelo contrário, irá representar um grande alívio.
Impulsionado pelos resultados promissores da CoronaVac, Doria iniciou uma articulação nas últimas semanas cujo objetivo parecia impensável: convencer o governo federal a comprar o produto do Butantan. Não lhe faltava apoio. O pleito interessava aos outros governadores e a parlamentares de todo o país. Isso porque os cofres estaduais serão poupados se o Ministério da Saúde adquirir o produto e distribuí-lo Brasil afora. O trabalho de convencimento foi capitaneado pelo secretário especial e chefe do escritório de representação do governo de São Paulo em Brasília, Antonio Imbassahy. Nos últimos trinta dias, ele conversou com alguns dos aliados mais próximos a Bolsonaro, como os ministros Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Jorge Oliveira (então titular da Secretaria-Geral da Presidência e recém-indicado para o TCU), o procurador-geral da República, Augusto Aras, e, claro, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, a quem Bolsonaro propalava ter na mais alta conta.
O presidente, porém, continuava impassível diante das investidas em favor do que chamava de “vacina de Doria”. Numa conversa com o presidente do TCU, ministro José Mucio, uma das autoridades que entraram na batalha para tentar amolecer a caneta presidencial, Bolsonaro perguntou: “Você tomaria uma vacina feita na China, Mucio?”. O mandatário do TCU rebateu, de forma irreverente, deixando claro que considerava desimportante a origem: “Contra o coronavírus, tomaria até se fosse feita em Campina Grande, presidente”. Mas se Bolsonaro continuava irredutível, Pazuello, em dado momento, cedeu. Numa conversa recente com Bolsonaro na presença de testemunhas, o ministro defendeu a ideia de que o governo anunciasse o plano de comprar a vacina sino-paulista e ofertá-la à população. Argumentou que a medida, em vez de fortalecer Doria, tiraria do governador a exclusividade dos louros políticos, pois levaria para o SUS a possível solução da pandemia. Bolsonaro mandou tocar adiante o caso.
Amparado nas palavras do capitão, o general à frente da pasta da Saúde levou ao pé da letra a missão. Na audiência virtual com os governadores, foi aclamado como “pacificador do país” ao comunicar que acabara de firmar um protocolo de intenções com o Butantan para a compra da vacina. A ocasião foi escolhida a dedo. Com a participação da maioria dos governadores, daria ares institucionais ao anúncio e enterrava o risco de Doria capitalizar o acordo sozinho. O compromisso, divulgado nos canais oficiais do governo, incluía a edição de uma medida provisória com a previsão de 1,9 bilhão de reais em investimentos na futura compra da CoronaVac. “A vacina do Butantan será vacina do Brasil” exultou Pazuello. Doria foi em uma linha semelhante, chamando o ministro de “pacificador”. “Venceu o Brasil”, declarou o tucano.
Mas o aparente armistício entre o governo paulista e o federal não durou 24 horas. Na manhã do dia seguinte, Bolsonaro já deixava claro que se sentia traído por Pazuello. “Se não se retratar, sai”, esbravejou diante de testemunhas. Em seguida, foi ao seu palco preferido, as redes sociais, para desautorizar o ministro da Saúde. Aliados do presidente se arvoraram em difundir a versão de que Pazuello havia avançado o sinal, não informando ao chefe sobre a elaboração de um protocolo que deixava o Palácio do Planalto refém de uma promessa. Argumentavam que a ordem de Bolsonaro para tocar a negociação significava que o governo poderia adquirir a “vacina de Doria”, mas apenas depois de todo o processo de testagem e eventual concessão de registro por parte da Anvisa. As manifestações irritadas de bolsonaristas raiz com o acordo também ajudaram a pôr mais gasolina no fogo. Como motivo adicional para justificar a súbita mudança de humores do capitão, o presidente recebeu informações via Itamaraty de que os Estados Unidos ficaram incomodados com o flerte avançado entre o Brasil e a China por causa da CoronaVac. Duas fontes próximas confirmaram essa história à reportagem de VEJA.
Além da atitude intempestiva do presidente, chama atenção no caso a inutilidade de todo o bate-boca neste momento, visto que a vacina só vai ficar pronta daqui a alguns meses. Não custa ainda repetir: isso se tudo der certo na reta final de testes. No Palácio do Planalto, esse mais recente capítulo da briga foi dado como encerrado na própria quarta 21. Mesmo humilhado publicamente pelo chefe, Pazuello voltou atrás e fez um porta-voz desmentir o próprio Ministério da Saúde, negando o conteúdo do documento que ele próprio havia assinado no dia anterior, em que se comprometia com a compra do imunizante. Auxiliares próximos a Bolsonaro admitem que lá na frente ele será obrigado a ceder à vacina chinesa, por falta de alternativas. Se for comprovada a eficácia da CoronaVac de no mínimo 50%, dificilmente o presidente irá barrá-la, tendo em vista que a pandemia continua vitimando centenas de pessoas diariamente. Além disso, o governo federal já colocou dinheiro em vacinas que se encontram em fases não tão avançadas como a do Butantan, sem falar que o apego do presidente à comprovação científica (e tomara que assim continue) é totalmente recente e oportunista. Basta lembrar seu entusiasmo com a inócua cloroquina.
Fora o triste espetáculo de ver autoridades desse quilate polemizando por causa de uma intenção de compra de uma vacina que ainda não está pronta, os dois iniciaram em paralelo uma discussão mais inoportuna ainda sobre a obrigatoriedade da imunização. Quando o país tiver um produto seguro e eficaz, é certo que haverá muita demanda para pouco produto em uma fase inicial. “Começou-se uma celeuma em cima de nada”, critica a virologista Nancy Bellei, que participa dos estudos da vacina de Oxford. No passado, ficou célebre o episódio da Revolta da Vacina, quando um motim popular estourou em 1904 no Rio de Janeiro em decorrência da obrigatoriedade de imunização contra a varíola. Na verdade, se 80% da população tomar voluntariamente a vacina, a imunidade de rebanho já terá sido alcançada. Para a advogada Martha Sittoni, especialista da área, o debate atual é inócuo. “A lei que trata da vacinação compulsória ainda precisa ser regulamentada pelo Executivo”, lembra.
A polêmica em torno da CoronaVac mostra que o país não aprendeu nada com os prejuízos já provocados pela politização do combate à pandemia. Há tempo ainda para corrigir os rumos e planejar um sistema rápido e eficiente de imunização, assim que a vacina for aprovada. Novos problemas – estes sim, reais — certamente surgirão. Exemplos: como fornecer injeções suficientes a preços baixos e como levar o produto — devidamente refrigerado — ao Sertão nordestino e à Floresta Amazônica. Com investimento privado e público, o Butantan já está construindo uma fábrica nova para a produção da CoronaVac. E, pelos cálculos de técnicos do próprio Ministério da Saúde, é provável que a vacina chinesa esteja pronta para uso no primeiro semestre de 2021 junto com a de Oxford, que vem sendo desenvolvida pela Fiocruz, outro instituto reconhecido na produção de medicamentos. “O importante é ter várias à disposição, uma só não dará conta de todo mundo, afirma a virologista Nancy Bellei. A diretora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Lessandra Michelin, acrescenta que os primeiros imunizantes que ficarão prontos provavelmente não serão os melhores — por isso, são chamados de “vacinas de bloqueio”. “A função deles é fazer com que a vida volte ao normal o mais rápido possível”, afirma ela. Com mais tempo e mais testes, virão as mais eficazes — e definitivas — contra a Covid-19. Como se vê, a ciência está fazendo o seu papel. Só a política pode agora criar obstáculos nessa reta final.
Publicado em VEJA de 28 de outubro de 2020, edição nº 2710