Era sexta-feira 13 em São Paulo. João Doria havia convocado a imprensa para uma entrevista na Secretaria de Saúde, na qual anunciaria medidas para conter a pandemia do coronavírus. À mesma mesa do governador tucano estavam secretários de sua equipe e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM), que tinha ido à cidade para discutir estratégias de controle da doença no estado — o principal foco da Covid-19 no país, com cinco mortos já confirmados até o meio-dia do dia 19. Bastou Mandetta iniciar a explanação no evento, transmitido ao vivo pela televisão, para que seu celular começasse a vibrar. No visor estava escrito “JB BR”, a identificação que o ministro usa para o número do presidente. Mandetta deixou que o telefone tocasse e continuou falando aos jornalistas, mas Bolsonaro não se deu por satisfeito. Voltou a chamar o celular do ministro enquanto ele terminava sua apresentação.
Ligar insistentemente para o ministro da Saúde em meio a uma crise de saúde poderia ser sinal claro de emergência. Mas não era nada disso. Bolsonaro estava furioso por ver Mandetta ao lado do governador de São Paulo, que se elegeu em 2018 com o slogan “BolsoDoria”, porém virou um de seus principais rivais políticos devido à pretensão do tucano de disputar a Presidência em 2022. Dias antes, Bolsonaro já havia advertido Mandetta por ter feito reuniões privadas com Doria e com o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), outro que sonha com o Palácio do Planalto. “Está errado, você não tem de ir. Precisava aparecer lá do lado daqueles caras?”, disse Bolsonaro ao seu ministro. Desde o início da pandemia, enquanto o presidente minimizava o tamanho do problema, chamando-o de “histeria” da imprensa, Mandetta assumiu a frente do combate à doença e ganhou merecidos elogios pela seriedade com que vem tratando o tema e pela capacidade de articulação com o Congresso e os governadores para tomar em conjunto as medidas necessárias. Mandetta, em resumo, tornou-se a voz e o porto seguro do país na luta contra a Covid-19. Tudo isso em um momento em que o presidente se encontra politicamente isolado e virou alvo de panelaços (veja a reportagem na pág. 38). Esse protagonismo incomodou Bolsonaro, e o descompasso entre os dois ficou evidente na tarde do último domingo, 15. Na ocasião, o presidente protagonizou o ato mais temerário de toda a sua gestão ao cumprimentar apoiadores na manifestação que ajudou a convocar, na entrada do Palácio do Planalto, sem usar máscaras nem luvas, em atitude contrária à que Mandetta vinha defendendo publicamente para conter a disseminação do vírus no país. Questionado pelo jornal Folha de S.Paulo no mesmo dia, à noite, sobre a ida do presidente à manifestação, o ministro afirmou que o ato de Bolsonaro não era ilegal, mas fez uma crítica indireta ao comportamento do chefe: “A orientação é não. E continua sendo não para todo mundo”. A pessoas próximas, Mandetta já revelou incômodo com o comportamento do presidente e afirmou que não deixaria as rixas políticas de Bolsonaro com os governadores interferir em seu trabalho.
Ao mesmo tempo que a Covid-19 piora perigosamente o estado de saúde de pessoas mais idosas ou com doenças preexistentes, o vírus deteriorou ainda mais as relações ruins entre Bolsonaro e os governadores. Sempre que possível, tanto Doria quanto Witzel procuram demonstrar que são mais responsáveis e eficientes na gestão do que o presidente. Isso se repete agora com as políticas públicas adotadas contra o coronavírus. De um lado, os governadores agiram de forma prudente e realista. Do outro, o presidente persistiu durante muito tempo em uma espécie de estado de negação do problema. Witzel se antecipou no anúncio de medidas enérgicas. Entre elas estão a suspensão de aulas nas redes pública e privada de ensino e de eventos esportivos, culturais, religiosos e políticos pelo prazo de quinze dias. De Brasília, porém, o governador fluminense não pode esperar muita ajuda. Um ofício em que ele pede a Bolsonaro 1 bilhão de reais de auxílio para ações de enfrentamento do coronavírus está há seis dias sem resposta. O documento foi enviado ao Palácio do Planalto na última sexta-feira, 13, quando o estado alçou um nível mais grave de resposta à doença, o da transmissão comunitária, momento em que o vírus ganha as ruas e já não é mais possível determinar o foco do contágio. Em São Paulo, tendo o infectologista David Uip como o chefe do comitê de combate ao vírus no estado, Doria adotou também uma tática dura e realista no enfrentamento da doença. Na última quarta, recomendou o fechamento de shoppings e academias na capital e na Grande São Paulo. A determinação vale até 30 de abril. Bolsonaro vem se mostrando contrário a decisões desse tipo. “Tem alguns governadores, no meu entender, posso até estar errado, mas estão tomando medidas que vão prejudicar em muito a nossa economia”, afirmou. Em outra entrevista, deixou ainda mais evidente que a sobrevivência política é sua prioridade. “Se acabar a economia, acaba o meu governo”, disse.
Até governadores mais próximos revelaram desconforto com esse tipo de postura. Em Goiás, Ronaldo Caiado (DEM) repreendeu os manifestantes convocados por Bolsonaro para os atos do último dia 15. Um dos três governadores que ainda vocalizam apoio ao presidente, Caiado foi vaiado e discutiu com bolsonaristas. Médico de formação, ele está preocupado que haja uma escalada de casos, tornando a situação incontrolável no estado. Por isso baixou um decreto nesta semana para fechar shoppings, cinemas, bares e restaurantes. Diante das críticas de Bolsonaro aos governadores, Caiado veio a público dizer que se baseia na ciência para administrar Goiás. “Tomo decisões como médico, não como político”, declarou. Curiosamente, a indicação de Mandetta ao ministério contou com a influência do governador, com quem ele dividia o protagonismo da frente parlamentar da saúde durante a última legislatura.
Na direção contrária da política de confrontos do chefe, Mandetta tratou de azeitar a linha de comunicação entre o Palácio do Planalto e os governadores, esquema que vem funcionando bem desde o início da crise. Os secretários estaduais de Saúde e membros do Ministério da Saúde criaram um grupo de WhatsApp para otimizar a comunicação. Foi por lá que confirmaram os primeiros casos, detectados em São Paulo, e decidiram concentrar em Mandetta a função de comunicá-los à população. Ele também foi o responsável por negociar com o Congresso a liberação de 5 bilhões de reais para custear as despesas emergenciais dos estados. “O fato de o ministro ter sido deputado e transitar bem dentro do Congresso ajudou bastante, além de ele ser amigo do presidente da Câmara”, diz Alberto Beltrame, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Mandetta também negociou com o Instituto Butantan, o maior produtor de vacinas da América Latina, a antecipação da campanha de vacinação contra a gripe de 15 de abril para o dia 23 deste mês. É esperado um pico na notificação de casos graves e, consequentemente, na ocupação de leitos de UTI a partir da vigésima semana de circulação do vírus, prevista para abril.
O ciúme presidencial diante do protagonismo de Mandetta resultou em medidas práticas, sobretudo após o ministro representar o Executivo federal numa reunião com os chefes dos outros poderes na segunda 16. Irritado, Bolsonaro formou um comitê executivo para conter a crise do coronavírus. Visto como inócuo por gestores públicos da área da saúde e criado com atraso irremediável diante da situação enfrentada pelo país, o comitê ministerial não conta com a participação do presidente e é liderado pelo ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto. Bolsonaro nem compareceu à reunião inaugural. Há quem diga que o comitê foi um alerta que Bolsonaro enviou a Mandetta sinalizando que poderia diminuir suas atribuições se não se adequasse ao discurso governista. Em paralelo, o capitão transformou o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, em seu principal conselheiro sobre o coronavírus. Contra-almirante da Marinha, Torres defende medidas menos drásticas diante da crise e, no dia 15, trocava mensagens com o presidente sobre o problema até que foi convocado para ir ao palácio conversar pessoalmente com Bolsonaro. Na sequência, esteve ao lado dele junto aos manifestante e até gravou vídeos do evento. No futuro, a aposta nos bastidores do Palácio do Planalto é que Torres poderá assumir o Ministério da Saúde.
ASSINE VEJA
Clique e AssineAinda que alguns dos movimentos de Mandetta tenham provocado desconforto no presidente, Bolsonaro sabe que é difícil mexer com ele neste momento. As cobranças por andar em companhia de desafetos políticos do capitão, no entanto, parecem ter surtido efeito. Na quarta 18, Bolsonaro e nove ministros, entre eles Mandetta, apareceram com máscara cirúrgica em uma confusa entrevista coletiva. Para espanto do país, o capitão gastou parte do tempo mentindo (jurou jamais ter feito convocações para as manifestações do 15 de março, quando há mais de uma prova a respeito disso) e, velha tática diversionista, criticando a imprensa. Acusou a Rede Globo e o site de VEJA de atuarem na convocação dos panelaços contra seu governo (os veículos apenas cumpriram com sua obrigação, que é informar) e, como se não bastasse, divulgou ali um panelaço-bolsonarista, chamado para a mesma noite. Sobre a real prioridade do momento, finalmente pareceu reconhecer o tamanho do desafio de saúde pública, esforçando-se para não contradizer o que havia declarado no começo da pandemia. “É grave e é preocupante, mas não devemos entrar no campo da histeria ou da comoção nacional”, disse. Espera-se que não volte atrás nessa opinião, como já fez em relação a outros assuntos importantes.
Na mesma coletiva, o ministro da Saúde, que falou por último, ouviu Bolsonaro dizer que não havia nenhum problema entre eles. Mandetta retribuiu os afagos. Em seu discurso, chamou o chefe de “grande timoneiro desse barco”. O desafio do ministro nas próximas semanas será adequar o sistema de saúde para atendimentos de quadros mais graves, que necessitem de internação. Devido ao déficit de leitos de UTI no país, a estratégia será transformar as vagas em enfermarias para receber pacientes graves com o uso de equipamentos alugados. Em tempos de caça às bruxas no governo para expurgar de Brasília colaboradores de gestões anteriores, Mandetta teve o bom-senso de manter a seu redor o quadro de técnicos que se especializaram em lidar com crises de saúde pública, principalmente após 2009, com o surto do vírus H1N1. No caso do coronavírus, de acordo com o ministro, o Brasil terá pela frente “três meses de muito stress”. Esse período poderá ficar ainda mais difícil se não forem deixadas de lado as rixas políticas que atrapalham o já altamente complexo e desafiador enfrentamento da Covid-19. Melhor antídoto contra a contaminação política, o bom-senso pode salvar vidas. Que nossas principais autoridades, sobretudo o presidente, tenham realmente aprendido algo com as confusões das últimas semanas. O Brasil precisa que técnicos como Mandetta continuem fazendo seu trabalho.
Com reportagem de Cássio Bruno e Mariana Muniz
Publicado em VEJA de 25 de março de 2020, edição nº 2679