Derrota do PT e ascensão do PSOL mudam o jogo de forças na esquerda
Enquanto petistas amargaram resultado pífio nas urnas, psolistas se tornaram uma ameaça ao domínio do partido de Lula nesse campo político
Quando o lento (para os padrões brasileiros) processo de totalização dos votos chegou ao fim, na semana passada, a professora da rede estadual Karen Santos, de 32 anos, mal podia acreditar: a candidata do PSOL foi a vereadora mais votada de Porto Alegre. Mulher, negra e jovem, Karen é um exemplo do perfil de político que ganhou espaço no pleito deste ano. Foram nessas novas caras que o nanico PSOL apostou para elevar seu desempenho nas urnas. Deu certo. No campo da esquerda, que no geral foi mal nessas eleições, a sigla ganhou um protagonismo inédito. Um triunfo capitaneado por mais de 1 milhão de votos que colocou Guilherme Boulos no segundo turno da disputa pela prefeitura de São Paulo contra Bruno Covas (PSDB). A legenda emplacou ainda os vereadores mais votados de cinco capitais (Porto Alegre, Florianópolis, Rio de Janeiro, Recife e Aracaju), incluindo pela primeira vez na composição das Câmaras um número significativo de mulheres transexuais e de representantes dos movimentos feminista e negro. “Falamos de gênero e raça, mas também de transporte e moradia. É isso que faz o partido reverberar”, explica Karen Santos.
O relativo bom desempenho do PSOL, que ainda disputará o segundo turno em Belém com o ex-prefeito Edmilson Rodrigues, contrapõe-se ao resultado pífio do irmão mais velho, o PT, nas urnas. A presença de petistas nas câmaras municipais cairá de 2 815 vereadores para 2 665, enquanto a de psolistas aumentará de 56 para 89. “Por manter sempre um posicionamento crítico e sem adesão aos governos petistas, nos tornamos o principal desaguadouro da renovação da esquerda”, comemora o presidente nacional do PSOL, Juliano Medeiros. Decadente, o partido do ex-presidente Lula conseguiu ter menos prefeitos do que em 2016, quando a eleição ocorreu após o impeachment de Dilma Rousseff e no auge do antipetismo. É fato que a sigla irá disputar o segundo turno em quinze localidades, com chances de vencer no Recife e em Vitória, mas é difícil comprar a ideia propagandeada pelos dirigentes petistas — Lula incluído — de que a legenda saiu vitoriosa. “Essa é uma análise oficialesca para inglês ver”, admite um membro do diretório nacional da sigla.
As razões para o insucesso são muitas, mas todas convergem para uma pessoa: Lula. Em São Paulo, por exemplo, o ex-presidente fez pressão até o último minuto para que Fernando Haddad disputasse a prefeitura. Com a negativa, o partido decidiu lançar o ex-deputado Jilmar Tatto, um burocrata de passado discutível que há anos comanda a máquina partidária no município. Não funcionou. Tatto não empolgou a esquerda e terminou a disputa em sexto lugar, com 8%, o pior desempenho da história da sigla na cidade. A mesma estratégia foi utilizada na maioria das capitais, com o PT lançando candidatos próprios em vez de buscar alianças. “Para a esquerda, a votação no Boulos mostra que há uma alternativa ao PT”, diz o economista e cientista político Luiz Carlos Bresser-Pereira.
A força do PSOL na corrida eleitoral majoritária em São Paulo se desdobrou em êxito na disputa proporcional: elegeu seis vereadores, contra dois da eleição passada. Embora esteja bem longe de se tornar uma potência, a sigla, de fato, obteve resultados mais significativos que os de colegas petistas. O partido fez o vereador mais votado da cidade do Rio, Tarcísio Motta, que, reeleito, desbancou nada menos do que Carlos Bolsonaro (Republicanos), o filho Zero Dois do presidente. De tabela, ganhou mais uma cadeira, tornando-se a maior bancada carioca, com sete vereadores, ao lado de DEM e Republicanos. Em Belo Horizonte, a representante da legenda na corrida pela prefeitura, a deputada federal Áurea Carolina, teve mais votos do que o candidato do PT, Nilmário Miranda — 103 115 contra 23 331. Ou seja, na matemática eleitoral de três dos maiores colégios do país, a curva do PSOL é de crescimento, fruto das escolhas por candidatos com maior grau de empatia nos setores esquerdistas. “Esses movimentos sociais têm uma enorme representação na sociedade moderna em crise. Os partidos que não compreenderem o fenômeno vão estancar ou regredir”, diz o ex-ministro petista Tarso Genro.
Do alto da sua arrogância, Lula não aparentou (por ora) melindre algum com a ascensão do candidato do PSOL em São Paulo. A amigos, o ex-presidente diz ter um sentimento de gratidão em decorrência da atuação que o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), à época chefiado por Boulos, desempenhou contra o impeachment de Dilma e a sua prisão. Na verdade, Lula sabe que o PT precisará contar com o apoio de siglas menores, como o PSOL e o PCdoB, em torno de uma candidatura presidencial em 2022. Falta apenas combinar com os demais partidos, a começar pelo PSOL, quem virá encabeçando a chapa. “É cedo para falar em alianças. O PT tem um projeto de resgate do lulismo e nós estamos propondo a renovação da esquerda”, diz Juliano Medeiros, o presidente do PSOL.
Os sinais da ascensão dessa sigla sobre o território do partido de Lula podem sinalizar uma reviravolta histórica no conjunto de forças da esquerda brasileira. O PT nasceu em 1980 como um movimento de oposição à ditadura que tinha como alicerce a organização sindical, mas foi na redemocratização que ganhou força. Na primeira disputa presidencial pós-regime militar, em 1989, o partido superou o trabalhismo do PDT, representado na época por Leonel Brizola, e levou Lula ao segundo turno. A sigla acumulou derrotas nas eleições presidenciais até 2002, quando Lula cedeu aos apelos para adotar uma versão “paz e amor”, em que atenuava o discurso da época de sindicalista e abria canais de diálogo com o empresariado. Uma vez empossado presidente, passou a enfrentar a resistência de um pequeno grupo de parlamentares de uma ala mais à esquerda e que rechaçava as medidas econômicas propostas pelo governo. Expulsos do PT no fim de 2003, eles se reuniram no ano seguinte para fundar o PSOL como um projeto de contraponto ao lulismo na esquerda. Mais recentemente, o PT viu seu capital político derreter diante dos inúmeros escândalos de corrupção, como o mensalão e o petrolão, e da péssima condução da economia.
Em paralelo, o PSOL aproveitou-se da brecha e foi ganhando popularidade entre os mais jovens ao defender causas sociais e ambientais com mais afinco do que outras siglas de esquerda, a exemplo de PDT e PSB. Nos últimos anos, ancorado na força das redes sociais, o partido conseguiu eleger políticos ligados a bandeiras de comportamento e a grupos minoritários, caso da vereadora carioca Marielle Franco, assassinada em 2018. Embora esteja em sintonia com algumas demandas da atualidade, o coração dogmático do PSOL ainda bate no século passado. Em sua carta programática, a sigla prioriza um projeto de país “anticapitalista” que aponta “a grande burguesia brasileira” como “sócia da dominação imperialista”. As diretrizes, que poderiam perfeitamente constar em discursos comunistas, ajudam a entender o histórico de votação dos deputados do PSOL no Congresso, indo contra todo e qualquer tipo de reforma econômica, como foi o caso da trabalhista e da previdenciária. Uma demonstração de que a roupagem nova que trouxe o sucesso recente nas urnas não veio acompanhada da modernização das antiquadas e desastrosas ideias econômicas da esquerda.
Publicado em VEJA de 25 de novembro de 2020, edição nº 2714