Disputa pelo comando da Frente Parlamentar Evangélica produz racha inédito
A poderosa bancada vive momento de desunião justamente em um decisivo ano eleitoral; cisma envolve dois grupos distintos da Assembleia de Deus
Se no âmbito do Poder Executivo a separação entre fé e Estado tem limites bem demarcados (e infelizmente cada vez mais ignorados no governo de Jair Bolsonaro), o Parlamento costuma ter maior tolerância às manifestações de cunho religioso a bem da representatividade que o Legislativo defende. Nos últimos anos, poucos grupos se aproveitaram tão bem dessa licença quanto os evangélicos. Como obreiros dedicados, eles construíram uma frente parlamentar que se tornou um dos principais grupos de pressão na Câmara, capaz de influenciar qualquer governo, de FHC a Jair Bolsonaro, passando por Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer. Por razões óbvias, o prestígio ficou ainda maior com Bolsonaro, a quem os evangélicos ajudaram a chegar ao poder, com quem comungaram boa parte da pauta e de quem se tornaram um dos principais fiadores em meio à erosão da popularidade presidencial. Mas há algo de ímpio no reino dos protestantes. Em um raro momento de desunião, a poderosa bancada rachou sobre quem deve comandá-la em 2022, justamente em um decisivo ano eleitoral.
O cisma, além de político, é quase religioso, porque envolve dois grupos distintos da Assembleia de Deus. Um deles é conduzido pelo pastor Silas Malafaia (do Ministério Vitória em Cristo), um dos mais próximos interlocutores de Bolsonaro. Do outro lado está a turma do bispo Samuel Ferreira (Ministério de Madureira). A disputa, ressalte-se, é para saber quem vai conduzir o rebanho. Atual presidente da frente e apoiado por Ferreira, o deputado Cezinha de Madureira (PSD-SP) é acusado de não querer honrar um acordo feito em 2020. Segundo esse pacto, Cezinha se comprometeu a passar o comando ao colega Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), que tem as bençãos de Malafaia, neste ano. O arranjo foi feito de forma a honrar a tradição da Frente Parlamentar Evangélica de eleger o presidente por aclamação, exatamente para evitar o desgaste de um cisma entre seus pares. Em dezembro de 2020, Cezinha e Sóstenes candidataram-se ao comando, e a questão foi resolvida da seguinte forma: o primeiro ficaria um ano na presidência e, no ano seguinte, passaria o bastão ao segundo — pelo estatuto, o mandato é de dois anos.
A briga pelo poder terreno começou, por ironia, em um dos maiores momentos de glória dos evangélicos. Foi em um culto no final de 2021, que teve a participação do recém-empossado ministro André Mendonça, o “terrivelmente evangélico” no Supremo Tribunal Federal, que o ruído pôde ser ouvido pela primeira vez. Na cerimônia, Samuel Ferreira elogiou o trabalho de Cezinha, a quem chamou de “filho por adoção”, e afirmou que iria “fazer campanha” para que ele permanecesse na presidência por mais um ano. Foi a senha para o grupo de Sóstenes desconfiar que poderia ser passado para trás. Seu padrinho Silas Malafaia percebeu o movimento e entrou no jogo enviando um áudio a parlamentares no qual reiterava que havia acordo para o revezamento. Do outro lado, o deputado Abílio Santana (PL-BA), ligado a Ferreira, soltou um vídeo dizendo que, se houvesse alguma ata atestando o acordo (e havia), o documento seria falso. Sóstenes rebateu com outro vídeo, fez circular a tal ata e disse que espera que em fevereiro Cezinha lhe entregue a presidência. Só com muita fé mesmo.
Afinal de contas, existem motivações de três tipos envolvendo a guerra nada santa dos evangélicos: ideológica, política e pragmática. O sucesso de um parlamentar ou de outro na disputa pela coordenação da bancada pode afetar diretamente a prioridade que será dada às bandeiras eleitorais mais controversas do bolsonarismo. A legalização dos jogos de azar, objeto de discussão na Câmara, é o ponto mais visível dessa briga hoje. Setores mais alinhados a Sóstenes desconfiam do compromisso de Cezinha com a pauta de costumes. Acham que ele transita demais entre políticos que não compartilham da fé do grupo e o acusam de ter feito dois movimentos contrários aos interesses dos evangélicos: primeiro, ter facilitado a derrubada do voto impresso (no entanto, ele votou a favor do projeto) e, mais recentemente, de ter participado de um acordo que colocou na pauta da Câmara o texto que libera os jogos de azar — o que o parlamentar nega.
A postura do bispo Abner Ferreira, irmão de Samuel, também é computada como pecado pelo grupo de Sóstenes: Abner pregou a favor da vacinação contra a Covid-19 e disse que o ato de se imunizar é uma doutrina que deve ser seguida pelos fiéis. Essa é uma posição diametralmente oposta à de Malafaia. Ao gosto de Bolsonaro, Malafaia defendeu recentemente no Twitter que as vacinas põem em risco a vida das crianças, informação falsa que fez a rede social remover o conteúdo.
Outro ponto a colocar lenha na fogueira é a eleição. A lista de desconfianças de setores da frente parlamentar inclui o fato de Cezinha ser de um partido de oposição, o PSD, de Gilberto Kassab. Apesar de já ter andado na garupa do presidente em uma de suas famosas motociatas e de fazer a defesa do governo na Câmara, Cezinha é acusado por alguns adversários de não ser bolsonarista raiz. Além disso, a igreja dele, o Ministério de Madureira, é vista como historicamente mais à esquerda — um pecado capital para os grupos radicais do bolsonarismo, dos quais Sóstenes é um expoente. Em junho do ano passado, por exemplo, o petista Luiz Inácio Lula da Silva reuniu-se com Manoel Ferreira, pai de Samuel e número 1 de Madureira, em um encontro no Rio de Janeiro que foi registrado nas redes sociais e irritou alguns evangélicos.
Há ainda o cálculo de parte do grupo de que é preciso, mais do que tudo, preservar o poder. Uma ala significativa dos evangélicos vê como um erro estratégico entregar o comando de uma frente parlamentar tão numerosa, em um ano de eleição, a um radical bolsonarista como Sóstenes. Essa análise está impregnada de pragmatismo, afinal, Bolsonaro está atrás de Lula em todas as pesquisas eleitorais e existe o receio de que a popularidade do presidente se deteriore ainda mais nos próximos meses, embora todas as principais lideranças evangélicas sustentem que as igrejas estão fechadas com o capitão. Contra Sóstenes pesa também o argumento de que Cezinha tem a qualidade de manter o diálogo com diferentes setores do Congresso. Esse tipo de postura flexível permitiu levar adiante pautas de interesse mais imediato das igrejas, casos do perdão de multas milionárias aplicadas aos templos e da manutenção da isenção fiscal, mesmo em detrimento de questões ideológicas como descriminalização do aborto e casamento homoafetivo.
Em meio a uma desavença de proporções bíblicas, a situação está longe de ser resolvida e seu desfecho é incerto. Aliados de Cezinha têm feito circular a tese de que mesmo uma eventual renúncia não levará à substituição automática por Sóstenes, mas a uma nova eleição interna — o que seria explosivo em um ano de eleições e poderia ampliar mais o inédito racha. O próximo capítulo importante será em 9 de fevereiro, quando os membros da frente farão a tradicional ceia de abertura do ano. Tudo indica que, independentemente do desenlace, será um evento indigesto, sobre o qual deve pairar, no mínimo, o pecado da gula política.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774