Criado para compensar a proibição de financiamento privado de campanhas, o Fundo Eleitoral nasceu em 2017 sob o signo da desconfiança. O laranjal de candidaturas-fantasma irrigado por esse dinheiro só confirmou as suspeitas. Embora tenha se tornado a principal fonte para as empreitadas eleitorais, esse assunto continua dividindo parlamentares, como mostra a última votação relacionada ao tema, em dezembro do ano passado, que elevou para 2 bilhões de reais o Fundão disponível para 2020 (em 2018, o valor era de 1,7 bilhão de reais). Valeu na ocasião a regra da maioria simples. O placar do Congresso registrou 242 favoráveis e 167 contrários. Agora, às vésperas do pleito municipal, pegaram fogo as discussões nos partidos sobre a divisão dessa verba recorde.
A briga mais feroz do momento envolve caciques de algumas legendas que desejam tirar da jogada correligionários que já se posicionaram publicamente contra o Fundão, seja por convicção seja para fazer bonito diante do eleitorado. O PP encontra-se na vanguarda da política da vingança servida em prato frio. A legenda criou uma comissão, coordenada por seu tesoureiro, Ricardo Barros (PR), que estipulou uma espécie de redutor para quem votou contra ou se absteve: os primeiros vão receber 20% e os outros, 40% do valor destinado aos colegas que disseram “sim”. Na visão de Barros, líder do governo na Câmara, os repasses reduzidos não são uma punição, pelo contrário. “Resolvemos não dar zero, mas um premiozinho”, diz. Terceiro maior beneficiário do Fundão, com 148,2 milhões de reais, o MDB adotou a tática da carta da rendição: vai liberar os recursos aos parlamentares que votaram contra, sob a condição de que devem enviar um pedido por escrito ao partido. No DEM, que terá direito a 120,8 milhões de reais, parlamentares prometem abrir mão do dinheiro e da prerrogativa de indicar algum candidato para recebê-lo. “Não faria sentido me posicionar contra e usar depois”, diz o deputado federal Kim Kataguiri.
Ao mesmo tempo que gera brigas, o Fundão tem o poder de reaproximar antigos inimigos. Ele está por trás das conversas de uma possível volta de Jair Bolsonaro ao PSL. Diante do naufrágio do Aliança pelo Brasil, a possibilidade de regresso foi admitida pelo próprio capitão. Após um divórcio turbulento, a reconciliação viria como união de conveniência. Principal responsável pela eleição da bancada de 52 deputados do partido em 2018, o presidente tem a volta estimulada por aliados de olho em retomar influência sobre diretórios estaduais da sigla e, portanto, dinheiro do fundo partidário. Entre a ala ligada ao presidente da sigla, o deputado Luciano Bivar (PE), apesar das mágoas, Bolsonaro é visto como trunfo para manter o tamanho da bancada e, sobretudo, o volume da verba.
Confusões ocorrem desde a gênese do Fundão. Após a primeira eleição com uso do mecanismo, a de 2018, não demoraram a aparecer escândalos, o mais notório deles envolvendo candidaturas de fachada de mulheres pelo PSL. Os problemas em tão pouco tempo de existência mostram que, além de aprofundar a discussão sobre o alto valor, é preciso aprimorar o modo como ele é distribuído. “Foi a alternativa viável ao fim do financiamento de pessoa jurídica, mas as candidaturas-laranja explicitaram a ausência de controle e a falta de democracia interna nos partidos. São poucas as pessoas que administram esses recursos”, avalia o cientista político Marco Antonio Carvalho Teixeira, da FGV. Há dois projetos tramitando no Senado que propõem o fim do Fundão, um de Major Olimpio (PSL-SP) e um de Marcio Bittar (MDB-AC). Ambos dormem nas gavetas da Comissão de Constituição e Justiça do Senado desde agosto do ano passado. Os políticos têm 2 bilhões de reais de motivos para deixar tudo como está.
Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702