Duas duplas: uma, Tabaré Vázquez e Luis Alberto Lacalle Pou, atual e futuro presidentes do Uruguai; a outra, os papas Bento XVI e Francisco, tal qual retratados no filme Dois Papas, de Fernando Meirelles. Seus universos são diferentes, um laico, outro religioso, como são diferentes suas formações, aspirações e posturas na vida. Acresce que uma dupla habita o mundo real, enquanto a outra flutua numa ficção, ainda que calcada na vida real. As histórias das duas duplas possuem em comum conter lições para esta virada de ano.
1. A história uruguaia
Falou-se em abundância em 2019 do desconcertante Chile, da incurável Argentina, da dilacerada Bolívia, do indomável Equador, da reincidente Colômbia, da trágica Venezuela — e quase nada do Uruguai. Tumultuosas desarmonias seduzem mais que situações de harmonia. A eleição presidencial do Uruguai, em novembro, terminou em empate técnico: pouco mais de 1 ponto porcentual em favor do candidato da direita, Lacalle Pou, sobre o da esquerda, Daniel Martínez. Não houve contestação do resultado, como no Brasil de 2014, nem o clima ferveu como no pós-eleitoral da Bolívia em 2019. Quando ainda se apuravam os votos, Martínez julgou desnecessário esperar o fim da contagem para reconhecer a derrota e saudar o vencedor.
A magnanimidade marca as histórias da sucessão no Uruguai e do filme Dois Papas
Em dezembro, o Uruguai se fez representar na posse do novo presidente argentino, Alberto Fernández, por dois presidentes: o ainda no cargo, Tabaré Vázquez, e o que tomará posse em março, Lacalle. A ocasião serviu-lhes para um show de fraternal entendimento. Quando a repórter de uma TV argentina perguntou a Tabaré como caminhava a transição, ele respondeu: “Já lhe mostro” — e, com um sorriso, virou-se para o canto onde estava Lacalle. A cena pode ser vista na internet. Lacalle dá uma gargalhada e se aproxima. “Isto não estava armado”, avisa. A entrevista segue com os dois juntos. Em outro momento, eles se apresentam lado a lado na fila de cumprimentos a Fernández, e Tabaré, em tratamento de um câncer no pulmão, ampara-se no braço de Lacalle. Assim seguem, braços dados, para espanto das hostes do ódio mundo afora, em direção ao novo presidente argentino.
2. A história vaticana
O filme de Meirelles e do roteirista Anthony McCarten tem seu ponto central nos diálogos entre o cardeal Jorge Bergoglio, o futuro papa Francisco, e o papa efetivo Bento XVI, durante visita do argentino a Roma. Pena que os diálogos sejam inventados, assim como a visita. Resta que, se não são verdadeiros, são verossímeis, e mostram a grandeza que pode permear a relação entre altos dirigentes com princípios opostos. As discordâncias entre os dois são enfatizadas no filme — Bergoglio a favor de reformas na Igreja, Bento XVI aferrado à tradição. “Deus muda”, diz Bergoglio. “Não muda. Se muda, onde encontrá-lo?”, protesta Bento XVI. “Durante a caminhada”, responde Bergoglio. Os dois estão caminhando pelos jardins de Castel Gandolfo, o palácio papal de verão. “Talvez o encontremos então ali em frente”, provoca Bento XVI. “E eu o apresentarei a você.”
Aos poucos, o embate cede a uma troca de ideias. Bento XVI (Anthony Hopkins) está cansado, só e angustiado, notadamente com o escândalo da pedofilia no clero. No ponto culminante da conversa, confidencia que pensa em renunciar. Eles estão agora na Capela Sistina, só os dois, apequenados sob o assombroso céu de Michelangelo. “Como renunciar?!”, protesta Bergoglio (Jonathan Pryce). Papas não renunciam. E renunciar por quê? “Não consigo mais ouvir a voz de Deus”, diz Bento XVI. Ele suspeita não ser o comandante adequado para os desafios da Igreja no momento histórico em que vive. No passo seguinte, já imersos ambos numa relação de afetuosa camaradagem, ele especula que Bergoglio pode ser a pessoa adequada para vencer as dificuldades que não foi capaz de enfrentar.
3. Conclusões
A história uruguaia mostra que a polarização, em si, não é o pior. O Uruguai está há décadas polarizado entre esquerda e direita. O pior é a polarização com maus modos. Na história vaticana, nas palavras do roteirista McCarten, “um liberal e um conservador, engajados numa luta de boxe intelectual, acabam descobrindo que não ouvir um ao outro não leva a nada, apenas os afunda em seus próprios preconceitos”. As duas histórias desaguam em desprendimento e magnanimidade. O Bento XVI do filme até sacrifica seus princípios ao suspeitá-los em dissintonia com a história.
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Publicado em VEJA de 8 de janeiro de 2020, edição nº 2668