A alturas tantas de suas conversas com o procurador Deltan Dallagnol, reveladas pelo site The Intercept Brasil, diz o juiz Sergio Moro: “Seguinte. Fonte me informou que a pessoa do contato estaria incomodada por ter sido a ela solicitada a lavratura de minutas de escrituras para transferências de propriedade de um dos filhos do ex-presidente. Aparentemente a pessoa estaria disposta a prestar a informação. Estou então repassando. A fonte é séria”. Dallagnol responde: “Obrigado!! Faremos contato”. Convida-se quem entende não haver nada de mais no diálogo entre o juiz e o procurador a considerar a hipótese da seguinte mensagem, agora do juiz ao advogado do ex-presidente Lula: “Seguinte. Fonte me informou que pessoa estaria incomodada por ter sido forçada a declarar que o tríplex do Guarujá foi destinado ao ex-presidente. Então estou repassando. A fonte é séria”. O advogado Cristiano Zanin responderia: “Obrigado!! Farei contato”.
A lei, a lógica, a moral e os bons costumes estabelecem que o juiz deve pairar, imparcial, equidistante e, se possível, olímpico, entre as partes. Quando ele sugere a uma delas que vá atrás de determinada pista, age como juiz de futebol que, tomado pelo ardor torcedor, ousasse um passe para deixar o atacante na cara do gol. O trecho em que Moro repassa o contato a Dallagnol é talvez o mais comprometedor, nas transcrições do Intercept Brasil, mas há mais. Em alguns momentos, procuradores se mostram inseguros quanto às provas contra Lula; em outros, Moro procura lhes direcionar o trabalho. Tudo somado, o episódio é prenhe de consequência. Põe Lula e o PT no ataque, Moro e Dallagnol nas cordas, a Lava-Jato em suspenso. Ainda há a questão da origem das transcrições, de seus efeitos jurídicos e da repercussão na sociedade. Um resumo, item por item:
Transcrições — Os celulares de Moro e de procuradores sofreram ataques de hackers que indicariam ação concertada contra a Lava-Jato. Com isso, o crime se ergueria à potência de um atentado sem sangue. Caso se descubra por trás um partido político, ficaria pior.
Efeitos jurídicos — O sonho maximalista do PT e dos demais implicados na Lava-Jato é que todos os julgamentos sejam anulados, seguindo-se a declaração de que o petrolão não existiu. Tal hipótese exigiria o necessário corolário de que os bilhões devolvidos aos cofres públicos (a mais gritante prova de que o petrolão existiu) provieram de surtos de generosidade de pessoas físicas e jurídicas. Ou seja: não se realizará.
Lula e o PT — A causa da liberdade do ex-presidente ganha robusto impulso. Mesmo ela não se realizando, sobra enorme lucro no trabalho de propaganda em favor da tese do julgamento viciado. No exterior, a propaganda petista, já aceita em meios de esquerda, acrescenta fôlego para se expandir.
Moro — Já parecia desconfortável, num governo a favor de armar a população e afrouxar as leis de trânsito. Tinha como perspectivas o STF ou a Presidência da República; agora só lhe resta a Presidência. É estranho dizer “só” lhe resta a Presidência, mas o STF, depois das transcrições, parece sumir-lhe do horizonte. Será difícil o Senado aprovar magistrado com atuação agora tão envenenada. Sobra-lhe, se sobrar, a aura de herói popular, para tentar a Presidência.
Dallagnol e a Lava-Jato — Dallagnol recua muitas casas na carreira e pode se ver tentado a reinventar-se na política. A Lava Jato, em sua sede original de Curitiba, precisa de ação rápida para mostrar-se ainda viva. Já não tem Moro, e é difícil imaginar que continue tendo Dallagnol. Ao mesmo tempo, é difícil imaginá-la sem Dallagnol.
Sociedade — Os ânimos das já superexcitadas hostes que se digladiam nas redes e nas ruas tendem a se acirrar. Deslocados ficam aqueles que se espremem no meio — a favor da Lava-Jato mas também do devido processo legal; contra os malfeitos e a má administração do PT mas também contra os delírios bolsonaristas —, mas nestes pode estar a melhor saída para o país.
P.S. — O general Eduardo Villas Boas divulgou nota em que declara “preocupante” o momento atual, “porque dá margem a que a insensatez e o oportunismo tentem esvaziar a Operação Lava-Jato”. Na véspera do julgamento de habeas-corpus de Lula no STF, no ano passado, ele havia declarado que o Exército “julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade”. Na época ainda era comandante do Exército, hoje é um assessor palaciano, mas continua celebrado como a maior liderança da força. Uma conjuntura já delicada tende a agravar-se com a entrada em cena do fator fardado e armado. E o que hoje é um adendo ao pé da página pode se transferir para a cabeça da narrativa.
Publicado em VEJA de 19 de junho de 2019, edição nº 2639