O governo ainda estava sob efeito do transe provocado pelos terríveis eventos do dia 8 de janeiro. No Planalto, os mais apavorados suspeitavam que a baderna era a senha para o início de um golpe contra a democracia. Era preciso agir rápido, mas todo o cuidado era pouco. Ainda no calor dos acontecimentos, o ministro da Defesa, José Múcio, recebeu um aviso no meio da noite: havia um movimento forte para retirá-lo do cargo. Múcio enfrentava ataques pesados do PT, que avaliou que ele havia sido leniente demais com os militares. Antes dessa conversa, Lula já havia decidido demitir o comandante do Exército e analisava uma lista de possíveis substitutos — missão extremamente delicada devido às circunstâncias. Pouca gente soube do papel importante que o vice-presidente Geraldo Alckmin teve nessa crise. Era ele o nome cotado para assumir o Ministério da Defesa. Ele também foi um dos fiadores da aproximação entre o presidente e o novo comandante do Exército, mudança operada sem turbulências, de maneira absolutamente discreta, apesar do clima de hostilidade nos quartéis e da rejeição que as Forças Armadas sabidamente cultivavam em relação ao presidente da República.
Se pairavam dúvidas em determinados setores do PT sobre a lealdade do vice-presidente, elas se dissiparam completamente depois desse episódio. Além de chefiar o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Alckmin passou a executar outras missões importantes. Cabe a ele, por exemplo, estabelecer canais de comunicação com setores do empresariado que apoiaram Jair Bolsonaro nas eleições, especialmente os representantes do agronegócio. Antes da posse, o vice já havia sido designado para discutir a transição com o então presidente Bolsonaro. Agora, seus dois gabinetes — o da Vice e o do ministério — servem de entreposto para políticos de oposição, bolsonaristas em sua maioria, que se mostram dispostos a conversar com o governo. Esses encontros têm facilitado o trabalho dos ministros encarregados da articulação política e, comenta-se, cabalando votos que podem ser decisivos para aprovar projetos no Congresso — tudo sem alarde, na surdina, com absoluta e necessária discrição.
“Quero dizer que essa união com o Lula foi importante porque estava claríssimo que o projeto do ‘sainte’ não era democrático. Foi uma parceria necessária para o país.”
É por essas e outras razões que, na terça-feira 11, quando embarcou para a viagem oficial à China, Lula estava absolutamente à vontade ao transmitir o cargo ao vice — situação que não se via com Dilma Rousseff, que não confiava em Michel Temer, e com Bolsonaro, que acreditava que Hamilton Mourão estava sempre pronto para tomar sua cadeira. A relação de Lula e Alckmin é completamente diferente. Os dois não se conheciam direito até o ano passado, quando pesquisas mostraram que o petista era o único candidato capaz de bater Bolsonaro nas urnas, mas, para que isso acontecesse, era preciso ampliar sua base de eleitores, atrair o centro e os conservadores que resistiam ao PT. A ideia de dividir a chapa com o ex-governador de São Paulo foi sugerida a Lula pelo hoje também ministro Márcio França. O petista topou na hora. O acerto não tardou. Combinaram que as rusgas do passado ficariam no passado — e assim foi.
Lula hoje confia mais em Alckmin do que em muitos dos seus antigos companheiros de partido. “Ele é aplicado, discreto, não gosta de holofotes, fala com todos os políticos e isso nos dá segurança”, diz um assessor do presidente. A discrição é sempre destacada como a qualidade do vice que mais agrada ao presidente e ao PT. E ela é fato. Além da agenda pública, pouco se sabe sobre a rotina de Alckmin. Seus hábitos franciscanos já geraram queixas sobre o excesso de mordomias disponibilizadas no Palácio do Jaburu, onde ele mora com a esposa. O vice também vive driblando a segurança. Em Brasília, ele foi sozinho tomar café numa padaria no centro da cidade. Há algumas semanas, em São Paulo, despistou a equipe e viajou até Pindamonhangaba dirigindo o próprio carro. Na volta, parou num posto de gasolina para descansar e foi despertado por um caminhoneiro, enquanto cochilava dentro do seu HB20.
“Sou da tese do padre Lebret que dizia que na política o ideal era ser um zé-ninguém a serviço de uma grande causa. Melhorar a vida das pessoas, promover emprego, desenvolvimento. Essa é a minha causa”
Durante a interinidade, Alckmin avisou que não iria usar o gabinete de Lula — outra demonstração da maneira como o vice delimita sua atuação. Em entrevista a VEJA, essa tendência fica nítida. Alckmin faz um balanço positivo dos 100 dias de governo, fala do 8 de janeiro, minimiza sua atuação, critica Bolsonaro, elogia Lula e até tece loas à deputada Gleisi Hoffmann (que nunca foi uma entusiasta da presença dele na chapa) e ao PT (partido que, no passado, ele chamou de “quadrilha”). O vice, porém, desconversa quando perguntado sobre o futuro. O PSB tem planos ambiciosos para 2026. Uma liderança do partido confidenciou que, caso Lula não dispute a reeleição, há o entendimento de que os papéis devam se inverter. Alckmin seria o candidato a presidente e o PT indicaria o vice. O raciocínio é sustentado na seguinte lógica: sem Lula, são reais as chances de a direita voltar ao poder. Alckmin, claro, seria o único político capaz de reeditar a frente vitoriosa de 2022. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Os primeiros três meses do governo foram o que o senhor imaginava? É impressionante os avanços que conseguimos nesse período. Demos um aumento muito maior para o salário mínimo com ganho real. Conseguimos implantar o imposto de renda para quem ganha até 2 640 reais com isenção total. O Bolsa Família, além dos 600 reais, tem 150 reais para crianças de 0 a 6 anos e a partir daí mais 50 reais para jovens. O Minha Casa, Minha Vida voltou para aqueles que precisam mais. Saúde é uma coisa urgente. O Brasil foi campeão no quesito imunização. Eu vacinei o presidente.
Na campanha, o senhor recebeu a missão de reaproximar Lula do agronegócio. Consta que, agora, o senhor cumpre a mesma missão com apoiadores de Jair Bolsonaro que buscam interlocução com o governo, certo? A briga política não tem a ver com interesse público. O presidente Lula sempre destaca que é preciso em qualquer viagem, para qualquer estado, avisar governador e prefeito. Isso, independentemente do partido. Não interessa. Acabou a eleição. Temos que trabalhar. Sou da tese do padre Lebret que dizia que na política o ideal era ser um zé-ninguém a serviço de uma grande causa. O importante é a causa. Melhorar a vida das pessoas, promover emprego, desenvolvimento. Essa é a minha causa.
“As instituições saíram fortalecidas e se desmascarou uma situação. É inegável que tinha uma ‘tchurma’ aí que não tinha compromisso com a democracia, mas sim com o poder”
Uma das primeiras visitas que o senhor recebeu como vice-presidente foi do deputado Ricardo Barros (PP-PR), ex-líder do governo Bolsonaro. Governo bom é aquele que está permanentemente ouvindo. Quem ouve mais erra menos. Nós temos que estar perto do setor produtivo e da sociedade civil organizada. Confederação Nacional do Comércio, sindicatos… Isso é fundamental. O governo tem que estar próximo do setor produtivo e da sociedade civil. O deputado Ricardo Barros é secretário de estado do Paraná.
Tem havido trombadas entre os ministros, a ponto de o presidente chamar a atenção de alguns em público. Trinta e sete ministérios não é demais? A rigor, a grande maioria dos ministérios que foram criados só começou a funcionar de fato nas últimas semanas. Até organizar, ajustar orçamento, vai tempo. Uma coisa importante, inteligente, é que, se alguém cuida de uma área específica, esse alguém cuida melhor. Não tinha como o Ministério da Fazenda cuidar de tudo. No Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, por exemplo, se você tem uma pessoa focada nisso, é evidente que os resultados serão melhores. Não criamos cargo nenhum. Foram todos redistribuídos, tanto que os ministérios estão mais apertados. Não tivemos uma despesa extra.
Dizem que o 8 de janeiro acabou de certa forma sendo positivo para o governo. O senhor concorda? O episódio do 8 de janeiro foi descabido e absurdo. A resposta dos três poderes foi rápida. A democracia saiu fortalecida e desmascarou a situação. É inegável que tinha uma “tchurma” aí que não tinha compromisso com a democracia, mas sim com o poder. Eu disputei eleição para prefeito de São Paulo e não fui para o segundo turno por 7 000 votos, em 7 milhões de eleitores. Fazer o quê? É da democracia. Agradeci a honra e a confiança. Agora é preciso reconstruir as pontes.
Quais pontes? Primeiro com os partidos políticos. Eu permaneço ouvindo, recebendo partidos, conversando. Depois você tem lideranças muito importantes e boas em todos os partidos. Também estou em frequente contato com as representações da sociedade civil. Sindicato dos trabalhadores, empresários, entidades… Depois, com os setores da economia: agricultura, indústria, comércio. E, claro, é imprescindível construir pontes com quem está na ponta, que são os governadores e prefeitos. Temos que estar frequentemente dialogando.
“A Gleisi é uma pessoa de valor. O PT tem uma coerência muito grande que é esse compromisso com a população mais empobrecida”
O senhor recebeu algum pedido especial do presidente Lula? O presidente sempre reforça que quer fidelidade ao programa de governo, à proposta que foi elaborada. A segunda coisa que ele pede é para agirmos rápido. O presidente Lula fala uma coisa muito certa. Para quem perde a eleição, quatro anos é um tempo muito longo, um século. Mas, para quem ganha, quando se abrem os olhos, o mandato já acabou.
Na campanha, Bolsonaro usou suas entrevistas do passado, nas quais o senhor criticava duramente Lula, para mostrar que aquela era uma aliança de ocasião. A conclusão é correta? De que o Brasil precisa mais: discussões e desavenças do passado ou nos unirmos pelo futuro? Na realidade, se você for lá atrás, eu e o Lula estávamos juntos na redemocratização do Brasil. Eu era prefeito de Pindamonhangaba. Nós participamos juntos da campanha pela redemocratização. Depois, lá na frente, o Lula foi criar o PT e eu ajudei a fundar o PSDB. Em disputa eleitoral existem desavenças. Mas o que eu quero dizer é que essa união com o Lula foi importante porque estava claríssimo que o projeto do “sainte” (Jair Bolsonaro) não era democrático. Foi uma união necessária para o país.
O senhor tem algum problema em conviver com nomes do PT? Não. Aliás, eu quero registrar a minha admiração pela presidente do PT. A Gleisi é uma pessoa de valor. Combativa, inteligente, e nós não precisamos concordar em tudo. A pluralidade é importante e o Lula destaca isso. Temos que debater, discutir. Não temos dogmas. Queremos emprego, renda e mudar a vida das pessoas para melhor. O PT tem uma coerência muito grande que é esse compromisso com a população mais empobrecida.
Qual a meta do seu ministério? O Brasil teve uma desindustrialização precoce. A Europa também se desindustrializou, mas a nossa foi precária e severa. Mais do que nos reindustrializar, nós precisamos de uma neorreindustrialização. Uma questão central é a agenda de competitividade. Há um princípio em medicina que diz: suprima a causa que o efeito cessa. Temos que agir nas causas do baixo crescimento. O nosso modelo tributário gera um custo absurdo para as empresas. Não é justo. Temos uma judicialização absurda que leva à insegurança jurídica, atrapalha as exportações. O mundo inteiro tem o IVA — imposto de valor agregado. Eu defendo isso. O que não podemos é ter uma alíquota só. Acho que o Haddad está indo bem e eu sou um grande entusiasta da reforma tributária.
Qual será a grande mudança para o contribuinte? A reforma vai trazer eficiência econômica. Estudos mostram que podemos aumentar o PIB em 10% nos próximos quinze anos. Ela faz a economia andar, simplifica e reduz custos, além de estimular a exportação por não acumular crédito — um conjunto de benefícios.
Nos últimos anos, os vices foram motivo de dor de cabeça para os titulares. Que tipo de vice o senhor quer ser? Não existe um modelo. Quero trabalhar e o presidente Lula dá muito espaço e até estimula. O presidente é afável e de bom trato. Gosto muito dele.
Por que optou por não sentar na cadeira do presidente Lula em sua interinidade? Presidente só tem um e é o Lula.
O senhor tem algum plano para 2026? Meu único plano é trabalhar com Lula pelo Brasil. Não tenho nenhum outro.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2023, edição nº 2837