Ex-jogador de futebol aparece em delação de ex-secretário de Witzel
Reportagem de VEJA revelou com exclusividade atuação de José Carlos de Melo, ligado a bicheiros, no governo do Rio de Janeiro
Em sua delação premiada, o ex-secretário estadual de Saúde do Rio de Janeiro Edmar Santos falou sobre a influência de José Carlos de Melo, pró-reitor administrativo da Universidade Iguaçu (Unig), instituição privada na Baixada Fluminense, no governo Wilson Witzel (PSC). Em 7 de junho, VEJA revelou com exclusividade a forma de Zé Carlos, como é conhecido, operar nos bastidores da gestão Witzel. Ligado a bicheiros, ele é peça-chave nas investigações da Procuradoria-Geral da República (PGR) que envolve o governador e a primeira-dama Helena em suspeitas de corrupção na área da Saúde. Ex-jogador de futebol nos anos 1980, Zé Carlos faz, por exemplo, a intermediação de contratos milionários entre empresários e o Palácio Guanabara e indicações em cargos estratégicos, além de ter financiado informalmente campanhas eleitorais de candidatos.
Reportagem de VEJA jogou luz em Zé Carlos, personagem até então desconhecido publicamente, mas que sempre circulou no mundo político. Com atuação discreta no poder, pró-reitor foi apresentado a Wilson Witzel por Pastor Everaldo Pereira, presidente nacional do PSC, nas eleições de 2018, por indicação do ex-prefeito de Nova Iguaçu Nelson Bornier (PROS), amigo de Zé Carlos e que nega ter feito esse pedido. No encontro, também estava Edson Torres, braço-direito de Everaldo e também citado na delação de Edmar Santos, conforme mostrou o “RJTV”, da Rede Globo, neste sábado, 15. O acordo de colaboração de Edmar Santos, que chegou a ficar preso após ser alvo da Operação Marcadores do Caos, foi homologado pelo Tribunal Superior de Justiça (STJ).
Em um dos trechos da delação premiada firmada com o Ministério Público Federal (MPF), Edmar Santos diz que Zé Carlos tem Carlos Frederico Loretti da Silveira, o Kiko, como sendo seu principal operador financeiro dentro do governo. Kiko é dono de uma das empresas contratadas pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio durante a pandemia do novo coronavírus: a Health Supplies Comércio de Materiais Médicos, Cirúrgicos e Hospitalares Ltda. Os contratos com a Health Supplies estão sob investigação.
Zé Carlos tem passe livre para transitar entre as duas grandes forças dentro do governo WIlson Witzel: uma delas liderada pelo Pastor Everaldo e a outra pelo empresário Mário Peixoto, preso na Operação Favorito por suspeitas de participação em irregularidades em contratos emergenciais na área da Saúde. Peixoto é ligado ao advogado Lucas Tristão, ex-secretário de Desenvolvimento Econômico, Energia e Relações Internacionais. Tristão foi exonerado por Witzel após pressão da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) na tentativa de evitar o pedido de impeachment.
Embora o CPF de Zé Carlos não apareça nas prestações oficiais de contas de candidatos à Justiça Eleitoral, políticos – de todas as correntes ideológicas – vão em romaria rumo à casa dele desde antes das eleições. As reuniões, regadas a vinho – o pró-reitor é um apreciador da bebida -, ocorrem em sua mansão, no Santa Mônica Jardins, na Barra da Tijuca, Zona Oeste. No luxuoso condomínio, não há imóveis com valor inferior a cinco milhões de reais. Apaixonado por carros esportivos, o ex-zagueiro do Itaperuna até antes da pandemia marcava seus encontros também no restaurante Fratelli, na Barra. Pelo menos sete políticos confirmaram à reportagem de VEJA que se encontraram com Zé Carlos nesses dois endereços. Eles preferem ficar no anonimato. O pró-reitor da Unig raramente frequenta eventos públicos. Não tem perfil nas redes sociais e nunca é fotografado ao lado de autoridades. Para ele, a discrição é a alma do negócio.
A regra só é quebrada quando o pedido é de velhos amigos dos tempos de Itaperuna. Na internet, há um vídeo em que Zé Carlos está presente na festa de aniversário, em 2016, do bicheiro Roberto Sued, o Troca-Letra, ex-presidente do clube. No evento, estavam presentes o ex-deputado federal Simão Sessim (PP), primo do contraventor Aniz Abraão David, o Anísio da Beija-flor, além do prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis (MDB). O pró-reitor é querido pela família de Anísio. Depois de perder a eleição em 2018, Sessim ganhou de Wilson Witzel o cargo de representante de sua gestão em Brasília. Em 2019, novamente ao lado de Roberto Troca-Letra e do ex-jogador Adriano Imperador, Zé Carlos participou de ação social, com uma doação financeira para uma instituição da cidade. Tudo registrado pela imprensa local.
No gabinete de Zé Carlos de Melo na Unig, que oferece pelo menos 17 cursos de graduação, políticos formam fila para conquistar outro quinhão: as tão desejadas bolsas de estudos destinadas a cabos eleitorais e familiares. Para se ter uma ideia, a mensalidade do curso de Medicina custa, em média, 9 300 reais. Um dos campeões de descontos no pagamento é o deputado federal Luiz Antônio Teixeira Júnior, o Dr. Luizinho (PP). Médico formado na instituição e amigo do pró-reitor, o parlamentar já o ajudou a se reunir com aliados. Em 2018, sua coligação, o “Rio quer Paz”, contava com candidatos do DEM, MDB e PTB. Antes de se eleger, Dr. Luizinho ocupou as secretarias de Saúde das gestões Bornier, na prefeitura de Nova Iguaçu, e Pezão, no governo estadual. O deputado tem Anísio da Beija-Flor como um “padrinho”, como costuma chamar carinhosamente o bicheiro.
Depois que abandonou a carreira de jogador de futebol, Zé Carlos começou a trabalhar no campus da Unig em Itaperuna, no Norte do estado. Caiu nas graças do ex-deputado federal Fábio Raunheitti (PTB), morto em 2005. Passou por várias funções até assumir o comando da instituição naquele município. Raunheitti, proprietário da Unig, teve um currículo manchado por casos de corrupção. Foi cassado após o episódio que ficou conhecido como o escândalo dos Anões do Orçamento, em 1993. No Congresso, ele votou a favor da legalização do jogo do bicho. Na Alerj, o ex-zagueiro atuou ainda como chefe de gabinete do ex-deputado estadual Fábio Gonçalves, o Fabinho, um dos filhos de Raunheitti. Médico, Fabinho chegou a ficar preso.
Após a morte de Fábio Raunheitti, parentes iniciaram uma guerra judicial pelo espólio do patriarca. No meio do conflito familiar, Zé Carlos ficou à frente de toda a instituição, que, ao longo dos anos, foi alvo de ações judiciais e denúncias de venda de diplomas. Em meio à crise financeira da Unig, em 2013, a prefeitura de Nova Iguaçu comprou a universidade por 15 milhões de reais por meio de leilão judicial. O dinheiro saiu dos cofres do Instituto de Previdência dos Servidores Municipais (Previni). A operação teve autorização da Câmara de Vereadores. Pelo acordo, a universidade pagaria um aluguel para usar o complexo. À época, o prefeito era Nelson Bornier, o responsável pela chegada de Zé Carlos ao governo Witzel.
Em nota, a Unig informou que: “José Carlos de Melo não é mais pró-reitor administrativo da universidade desde o mês de junho de 2020. O desligamento se deu em virtude de divergências de posicionamentos sobre gestão e resultados insatisfatórios nos últimos anos. A rescisão foi comunicada a ele no dia 5 de junho, sendo formalizada mediante notificação no dia 25 do mesmo mês. Importante reforçar que, desde a data da notificação, José Carlos de Melo não mantém mais qualquer relação com a instituição, e que a universidade não possui informações sobre eventuais atividades empresariais exercidas por ele fora da instituição”.
Outros trechos da delação
Edmar Santos contou ainda ter sofrido ameaças dentro do presídio da Polícia Militar, em Niterói, na Região Metropolitana. O ex-secretário foi PM e, por isso, ficou detido no local. Segundo Edmar, a pressão ocorreu para que ele informasse se tinha fechado algum tipo de acordo de delação. O ex-secretário disse que um sargento, também preso, tentou obter informações sobre a colaboração premiada. Edmar afirmou que o militar dizia ser próximo ao deputado estadual Márcio Canella (MDB) e a outros políticos. Disse acreditar que o recado tenha vindo do grupo do Pastor Everaldo.
Na delação, Edmar Santos confirmou o que já se sabia: a disputa de poderes dentro do governo de Wilson Witzel entre os grupo de Pastor Everaldo e do empresário Mário Peixoto, como VEJA mostrou em reportagens. A secretaria Estadual de Saúde, epicentro das investigações de irregularidades na compra de equipamentos e na montagem de hospitais de campanha, é comandada pelo presidente nacional do PSC, partido que elegeu Witzel.
Edmar Santos afirmou também que a Organização Social Idab empregava funcionários indicados por deputados estaduais. O Idab administra sete unidades de pronto-atendimento no estado do Rio e geriu os Hospitais Zilda Arns, em Volta Redonda, e Anchieta, no Rio, destinados a pacientes com Covid-19.