Na década de 1980, quando era zagueiro do Itaperuna, ele sonhava com uma carreira de sucesso. Mas, dentro de campo, só vestiu a camisa do inexpressivo clube da Região Noroeste do Rio de Janeiro, hoje na Série C do Campeonato Carioca. Pendurou as chuteiras nos anos de 1990 e nunca ganhou um título como profissional do futebol. Mais de 30 anos depois da frustração nos gramados, a grande jogada de José Carlos de Melo foi na política. Pró-reitor administrativo da Universidade Iguaçu (Unig), instituição privada na Baixada Fluminense, Zé Carlos, como é conhecido, tornou-se peça-chave no governo de Wilson Witzel, que enfrenta denúncias de corrupção. Com atuação discreta no poder, o ex-atleta opera nos bastidores e sua influência vai desde indicações a cargos em secretarias e outros órgãos do Palácio Guanabara até intermediações em contratos milionários, segundo apurou VEJA. E não é só: amigo de bicheiros, o empresário é muito procurado por candidatos em campanhas eleitorais para terem seu apoio nas urnas.
ASSINE VEJA
Clique e AssineComo Zé Carlos de Melo chegou a Wilson Witzel? A resposta está em Nova Iguaçu, onde fica o maior e principal campus da Unig. Nelson Bornier (PSC), ex-prefeito da cidade da Baixada, estreitou os laços do pró-reitor, um amigo de longa data, com o pastor Everaldo Dias Pereira, dono do PSC, partido do governador, e com o braço direito dele, Edson Torres. Segundo relatório da Polícia Federal sobre uma investigação de repasses de recursos do partido envolvendo o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB), preso na Lava Jato, e o ex-ministro Geddel Vieira Lima, ambos do MDB, a dupla Everaldo-Torres é sócia em negócios. Os dois sugeriram o nome do ex-zagueiro a Witzel. O ano era 2018. Azarão naquela disputa pós-gestão Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, também presos na Lava Jato, o ex-juiz federal, com discurso pelo fim da roubalheira e surfando na onda Bolsonaro, havia acabado de chegar ao segundo turno contra o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM), o favorito.
Já com Witzel sentado na cadeira do Guanabara, Zé Carlos ganhou a confiança do governador embora não tenha assumido qualquer cargo oficialmente. No entanto, o pró-reitor tem passe livre para transitar e operar entre as duas grandes forças dentro do governo: uma delas liderada pelo Pastor Everaldo e a outra pelo empresário Mário Peixoto, preso na Operação Favorito por suspeitas de participação em irregularidades em contratos emergenciais na área da Saúde. Peixoto é ligado ao advogado Lucas Tristão, ex-secretário de Desenvolvimento Econômico, Energia e Relações Internacionais. Tristão foi exonerado recentemente após pressão da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) – os deputados têm em mãos 10 pedidos de impeachment contra Witzel após o escândalo de corrupção, principalmente o que diz respeito à construção de hospitais de campanha para atender pacientes com Covid-19.
O sucesso de Witzel na eleição rendeu bons frutos para Zé Carlos. Um dos exemplos está relacionado à City Works Ambiental. Com sede no bairro Moquetá, em Nova Iguaçu, a empresa tem como sócio oficial Pedro Mário Nardelli Filho. De uma das famílias mais tradicionais da região e diretor de futebol do Bangu, Pedro é muito próximo do pró-reitor e também de Bornier, pai de Felipe Bornier, secretário de Esporte, Lazer e Juventude de Witzel. Só na Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio (Cedae), a City Work ganhou três contratos sem licitação. A publicação saiu nas edições de 12 de junho e 9 de dezembro de 2019 e de 29 de abril deste ano do Diário Oficial. No total, a City Works embolsou 62 milhões de reais para fazer serviços de reparo e manutenção de ramais e ligações prediais do sistema de abastecimento de água e esgoto.
Os negócios da City Works não param por aí. Graças ao empenho de Zé Carlos de Melo a empresa conquistou outro contrato milionário, novamente sem licitação, desta vez com o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), vinculado à Secretaria do Meio Ambiente, comandada por Altineu Côrtes (PR). Lá, a City Works abocanhou 2,5 milhões de reais para realizar a limpeza emergencial no sistema lagunar de Jacarepaguá, na Zona Oeste da capital. O sucesso da empreitada foi registrado por Pedro Mário Nardelli Filho nas redes sociais: “Nós, da City Works Ambiental, temos muito orgulho de embarcar nessa missão. Com plena ciência dos problemas que ainda existem, mas com a certeza que a solução está a caminho. Com metas consistentes e melhorias determinadas”, escreveu o empresário iguaçuano.
Embora o CPF de Zé Carlos não apareça nas prestações oficiais de contas de candidatos à Justiça Eleitoral, políticos – de todas as correntes ideológicas – vão em romaria rumo à casa dele desde antes das eleições. As reuniões, regadas a vinho – o pró-reitor é um apreciador da bebida -, ocorrem em sua mansão, no Santa Mônica Jardins, na Barra da Tijuca, Zona Oeste. No luxuoso condomínio, não há imóveis com valor inferior a cinco milhões de reais. Apaixonado por carros esportivos, o ex-zagueiro do Itaperuna até antes da pandemia marcava seus encontros também no restaurante Fratelli, na Barra. Pelo menos sete políticos confirmaram à reportagem de VEJA que se encontraram com Zé Carlos nesses dois endereços. Eles preferem ficar no anonimato. O pró-reitor da Unig raramente frequenta eventos públicos. Não tem perfil nas redes sociais e nunca é fotografado ao lado de autoridades. Para ele, a discrição é a alma do negócio.
A regra só é quebrada quando o pedido é de velhos amigos dos tempos de Itaperuna. Na internet, há um vídeo em que Zé Carlos está presente na festa de aniversário, em 2016, do bicheiro Roberto Sued, o Troca-Letra, ex-presidente do clube. No evento, estavam presentes o ex-deputado federal Simão Sessim (PP), primo do contraventor Aniz Abraão David, o Anísio da Beija-flor, além do prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis (MDB). O pró-reitor é querido pela família de Anísio. Depois de perder a eleição em 2018, Sessim ganhou de Wilson Witzel o cargo de representante de sua gestão em Brasília. Em 2019, novamente ao lado de Roberto Troca-Letra e do ex-jogador Adriano Imperador, Zé Carlos participou de ação social, com uma doação financeira para uma instituição da cidade. Tudo registrado pela imprensa local.
No gabinete de Zé Carlos de Melo na Unig, que oferece pelo menos 17 cursos de graduação, políticos formam fila para conquistar outro quinhão: as tão desejadas bolsas de estudos destinadas a cabos eleitorais e familiares. Para se ter uma ideia, a mensalidade do curso de Medicina custa, em média, 9 300 reais. Um dos campeões de descontos no pagamento é o deputado federal Luiz Antônio Teixeira Júnior, o Dr. Luizinho (PP). Médico formado na instituição e amigo do pró-reitor, o parlamentar já o ajudou a se reunir com aliados. Em 2018, sua coligação, o “Rio quer Paz”, contava com candidatos do DEM, MDB e PTB. Antes de se eleger, Dr. Luizinho ocupou as secretarias de Saúde das gestões Bornier, na prefeitura de Nova Iguaçu, e Pezão, no governo estadual. O deputado tem Anísio da Beija-Flor como um “padrinho”, como costuma chamar carinhosamente o bicheiro.
Depois que abandonou a carreira de jogador de futebol, Zé Carlos começou a trabalhar no campus da Unig em Itaperuna. Caiu nas graças do ex-deputado federal Fábio Raunheitti (PTB), morto em 2005. Passou por várias funções até assumir o comando da instituição naquele município. Raunheitti, proprietário da Unig, teve um currículo manchado por casos de corrupção. Foi cassado após o episódio que ficou conhecido como o escândalo dos Anões do Orçamento, em 1993. No Congresso, ele votou a favor da legalização do jogo do bicho. Na Alerj, o ex-zagueiro atuou ainda como chefe de gabinete do ex-deputado estadual Fábio Gonçalves, o Fabinho, um dos filhos de Raunheitti. Médico, Fabinho chegou a ficar preso.
Após a morte de Fábio Raunheitti, parentes iniciaram uma guerra judicial pelo espólio do patriarca. No meio do conflito familiar, Zé Carlos ficou à frente de toda a instituição, que, ao longo dos anos, foi alvo de ações judiciais e denúncias de venda de diplomas. Em meio à crise financeira da Unig, em 2013, a prefeitura de Nova Iguaçu comprou a universidade por 15 milhões de reais por meio de leilão judicial. O dinheiro saiu dos cofres do Instituto de Previdência dos Servidores Municipais (Previni). A operação teve autorização da Câmara de Vereadores. Pelo acordo, a universidade pagaria um aluguel para usar o complexo. À época, o prefeito era Nelson Bornier, o responsável pela chegada de Zé Carlos ao governo Witzel.
Procurado por VEJA, Wilson Witzel ainda não respondeu.
Em nota, Zé Carlos informou a VEJA que não mantém contato com o governador Wilson Witzel. Mas, sem citar nomes, admitiu se encontrar com “autoridades públicas” por causa do cargo que ocupa na Unig: “todo e qualquer contato com autoridades públicas sempre se deu e dará dentro de elevados padrões morais, éticos e legais”, disse. O ex-zagueiro afirmou também ter concedido bolsas de estudos para 4.180 alunos, em 2019, segundo ele, fora do período eleitoral. Mas não revelou a quantidade oferecida nos anos anteriores.