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Festa e alianças políticas: a vida de mordomias de Flordelis

Apontada como mandante da morte do marido, a deputada segue no eixo Rio-Brasília, com imóvel funcional, salário de 33 700 reais e dois carros

Por Marina Lang, Jana Sampaio Atualizado em 4 jun 2024, 13h42 - Publicado em 12 fev 2021, 06h00
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  • De saia longa preta feita na medida para esconder a tornozeleira, blusa de poás e longa peruca acobreada, a deputada federal e pastora Flordelis dos Santos (PSD-RJ) comemorou seu aniversário de 60 anos no palco de sua igreja em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, como se inquérito não houvesse: ela é apontada como mandante da morte do marido, Anderson do Carmo, em junho de 2019. Protagonista de uma história tanto tétrica quanto mirabolante — para começo de conversa: tem 55 filhos, sendo 51 adotados —, Flordelis se tornou ré na Justiça em agosto passado, mas segue firme na vidinha de parlamentar, religiosa e cantora, com fé na expectativa de que a providência divina vai livrá-la dessa. “Eu perdi meu marido de forma trágica. E entreguei tudo na mão de Deus. O meu oculto e escondido pertencem a ele. E tudo vai vir à tona na hora dele”, profetizou do púlpito, na sua festa.

    No plano terreno, ela procura alinhavar alianças políticas para se salvar na Câmara e, ao mesmo tempo, se mexe para evitar a derrocada de sua igreja: a comemoração, no único dos seis templos do Ministério Cidade do Fogo ainda em funcionamento, começou com uns trinta gatos-pingados e só acabou com cerca de 150 (no espaço cabem 1 000) porque um pastor amigo alugou um ônibus e convocou seus paroquianos para a festa. Nem a prometida “Santa Ceia”, composta de estrogonofe de frango e bolo de sobremesa, atraiu os fiéis. Aglomeração, pelo menos, não houve.

    Dois meses depois de ser indiciada, a deputada Flordelis teve um pedido de afastamento da função encaminhado ao Conselho de Ética da Câmara. Por causa da pandemia, o órgão não estava funcionando, e assim permaneceu o ano todo. Agora, nem existe: com a mudança da mesa diretora, novos integrantes têm de ser indicados, o que só deve acontecer no fim do mês. Enquanto isso, embrulhada na sacrossanta imunidade parlamentar, Flordelis segue desfrutando imóvel funcional, salário de 33 700 reais, dois carros, passagens aéreas e consultoria de mídias sociais, utilíssima na preservação de sua arranhada imagem.

    Também faz questão de cultivar boas relações com o poder, tecendo elogios nas redes sociais, entre outros, ao presidente Jair Bolsonaro e ao deputado Arthur Lira. Ao lado deste, apareceu em uma foto comemorando a vitória de seu nome para a presidência da Câmara. “Vencemos. Agora a Câmara terá voz”, proclama a postagem. Em julho, quando Michelle Bolsonaro foi diagnosticada com Covid-19, manifestou sua solidariedade à primeira-dama, também evangélica, exibindo foto das duas juntas. Com o mesmo Lira e mais dezenas de congressistas, visitou a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e o Palácio Guanabara, onde se encontrou com o governador em exercício, Cláudio Castro. Flordelis espera que a proximidade com figuras importantes impeça que a Câmara a afaste — e o histórico da Casa, reticente a punir integrantes, conta a seu favor. Mas sua presença em atos públicos é classificada como “constrangedora” por parlamentares ouvidos por VEJA. “Lira é uma raposa felpuda da política, não vai se queimar por causa dela”, afirmou um ex-­aliado da deputada.

    MUY AMIGOS - Flordelis e seu agente de shows, Soares: eles negam namoro -
    MUY AMIGOS - Flordelis e seu agente de shows, Soares: eles negam namoro – (Reprodução/Instagram)
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    Principal nome na trama macabra que resultou no homicídio de Anderson, com quem foi casada por 25 anos, a deputada nega participação no crime e põe a culpa em parte da prole. Uma neta e sete filhos estão na cadeia por envolvimento no caso. Todos, com exceção de um — Lucas, que comprou a arma do crime —, apoiam a mãe e se esforçam por inocentá-la. Uma filha biológica, Simone dos Santos, confessou em juízo que foi a responsável por ter planejado o assassinato, junto com uma irmã adotiva, para se livrar das investidas sexuais do padrasto. A teia de relações no lar dos Santos-Carmo é complicada. Anderson, antes de se casar com Flordelis, namorou Simone. Há um caso de casamento entre irmãos adotivos. A linha de poder doméstico seguia uma hierarquia típica de seitas religiosas desvirtuadas, com os mais velhos dando ordens aos mais novos.

    A polícia, no entanto, considera que a cabeça do assassinato é mesmo a deputada, interessada em se livrar do controle de Anderson, que dominava tanto sua carreira quanto as suas finanças. As investigações mostram que, junto com parte dos filhos, ela arquitetou um plano para envenená-lo que começou em maio de 2018, mais de um ano antes do assassinato, quando ele foi internado pela primeira vez com gastroenterite aguda. “As persistentes tentativas de envenenamento geraram cada vez mais internações”, aponta o inquérito. A certa altura, uma das noras do casal passou cinco dias hospitalizada depois de tomar, por engano, um suco destinado ao sogro. “Ele é ruim de morrer, não morre nunca”, teria dito a filha Simone, segundo relato de um irmão, Luan dos Santos. Diante dos fracassos, mãe e filhos-cúmplices cogitaram contratar um matador de aluguel para simular uma tentativa de roubo. Também não deu certo. Anderson estava na garagem da casa da família, de cueca, quando foi baleado e morto, segundo as investigações, por um dos filhos biológicos, Flávio dos Santos.

    CONEXÃO BRASÍLIA - A deputada com Lira (acima), celebrando a vitória dele na Câmara, e com Michelle: exibindo proximidade com o poder nas redes sociais -
    CONEXÃO BRASÍLIA - A deputada com Lira (acima), celebrando a vitória dele na Câmara, e com Michelle: exibindo proximidade com o poder nas redes sociais – (Reprodução/Instagram)
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    A pastora Flordelis começou a ficar famosa em 1994, quando se divulgou sua primeira adoção (muitas sem documentação) serial, de 37 de uma vez só. No mesmo ano se casou com Anderson, que era dezesseis anos mais jovem e havia sido acolhido em sua casa. A carreira de pastora e cantora gospel deslanchou no mesmo ritmo que a vaidade de Flordelis. Nascida e criada na favela do Jacarezinho, ela fez diversas plásticas nos seios, glúteos e nariz, repaginou o guarda-roupa com grifes caras e, para disfarçar um início de calvície, passou a desfilar com perucas variadas — seriam seis, cada uma de 5 000 reais. Depois da morte do marido, dizem pessoas próximas, o processo de embelezamento se acentuou. “Ela sempre se importou com a imagem e tinha o costume de aplicar Botox pelo menos três vezes por ano, mas agora gasta ainda mais com tratamentos estéticos”, afirma uma delas. Há três anos, lançou-se candidata a deputada federal e foi a quinta mais votada no Rio de Janeiro.

    Os cuidados com a boa forma — além do carisma, claro — podem ter encantado Allan Soares, seu agente de shows, 35 anos mais novo, com quem estaria namorando. Ambos negaram o romance a VEJA, afirmando que são apenas bons amigos. Soares anda tendo pouco que fazer, porque Flordelis está impedida de viajar — só pode circular entre o Rio, onde mora, e Brasília, onde trabalha, o que deixa quase em branco a agenda de shows (pelos quais garante não receber cachê). Com a renda da igreja secando, a deputada se sustenta atualmente com o mandato parlamentar — salário, verba de gabinete de 2,1 milhões de reais e, em 2020, um adendo de 1,3 milhão para despesas extras. Também teve liberados 10,1 milhões de reais em emendas parlamentares que distribui a seu bel-prazer. Infratora contumaz de medidas cautelares, que a impedem de viajar e a obrigam a estar em casa entre 23 e 6 horas, a deputada também desliza no uso da tornozeleira: segundo a central de monitoramento da Secretaria de Administração Penitenciária, as baterias foram descarregadas nos dias 11, 25 e 27 de dezembro. Até agora, Flordelis teve sorte: todos os seus pecados foram perdoados.

    Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725

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