O senhor não cita em nenhum momento de seu último livro Jair Bolsonaro, que era deputado federal nos anos da Presidência FHC. Ele estava fora do seu radar? Eu nunca o vi na vida, nem desejo. De longe, tenho a impressão de que ele é uma pessoa… tosca. Na minha época de Presidência, Bolsonaro não tinha importância. Tinha presença apenas na política corporativista, agitando os quartéis. Os militares o viam com preocupação, pois era um capitão rebelde, mas nunca imaginavam que chegaria à Presidência.
O que explica a ascensão dele? Ele ganhou a eleição por ter repetido uma agenda negativa: não ao PT, não à corrupção, não ao crime organizado. Quem votou em Bolsonaro votou com um pouco de medo. Alguns setores do Brasil, como os ruralistas, estavam muito inquietos com a situação anterior, que era um caos. Cadê hoje o MST? Sumiu. Essa turma está com mais medo, com menos apoio. No meu tempo de presidente, o MST fazia marcha do Sul para Brasília porque as prefeituras davam dinheiro. Tinha um bom apoio do PT. O Brasil foi para a direita, em seu conjunto, tanto que Bolsonaro venceu. Esse movimento para a direita não foi só aqui, ocorreu no mundo inteiro.
Com avalia até aqui o governo Bolsonaro? Ainda que seja cedo para fazer uma avaliação objetiva, me parece um governo que não tem rumo. Ou melhor: é um governo que não transmite ao país para qual rumo está levando o Brasil. Então você fica meio sem saber para qual lado vamos.
Em menos de um ano de governo, ele já se lançou candidato à reeleição. O que acha disso? Acho que está errado, né? É uma bobagem. Quem está no governo precisa postergar ao máximo o momento da eleição. Você não ganha nada antecipando essa discussão. Só perde força, diminui de tamanho.
O senhor venceu Lula em duas eleições presidenciais no primeiro turno e ele o elegeu como inimigo. Apesar disso, os senhores tiveram uma relação cordial no momento da troca de governo, em 2002. Como isso foi possível? Conheço o Lula de quando ele era secretário do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, antes das greves do fim dos anos 70. Ele me atacou muito por razões políticas. Com a vitória do PT, a versão que corria na época era que o Lula iria levar o Brasil para a esquerda, fazer a revolução. Na transição, fiz bastante esforço para que o processo fosse civilizado, não pelo Lula, mas pelo Brasil, para dar continuidade, para que as instituições funcionassem direito.
“Ainda é cedo para prever o que vai acontecer em 2022. Minha sensação é que haverá um cansaço dessa polarização”
Ele o surpreendeu no governo? Eu não o queria como presidente porque sempre achei que ele seria pior do que foi no governo. O Lula pegou ventos favoráveis, um cenário bem diferente daquele dos meus dois governos, nos quais enfrentei várias crises internacionais. Comparado a Bolsonaro, Lula é um conservador, não quebra instituições. O Bolsonaro quebra. A Dilma Rousseff também não quebrava, mas era incompetente. Na história, o Michel Temer vai ser recuperado no seguinte sentido: ele sabia fazer uma coisa que o Bolsonaro deveria saber fazer também — mexer com o Congresso. Ele tentou fazer a reforma da Previdência, mas não conseguiu. Teve má sorte. E más companhias.
Como vê a situação política do Lula hoje? O Lula sempre foi primeiro eu, depois eu, depois eu, depois o resto. Ele tem qualidades inegáveis de liderança. Recentemente, vi uma entrevista dele na cadeia e me pareceu à vontade. O PT hoje é o “Lula livre”. O encanto que havia anteriormente não existe mais com o processo de poder, a vinculação com a corrupção… Mas, se for posto em liberdade, ele vai agitar, pois tem uma virtude que conta muito no Brasil: sabe falar. Nunca me esqueço do Lula presidente explicando na TV a questão da poluição. “Vocês sabem, né, gente? A Terra não é plana, a Terra é redonda. Se a Terra fosse plana, a poluição ia ser problema deles, não nosso. Mas, como ela roda, a poluição cai na cabeça da gente.” Ele não estava preocupado com o certo ou errado, estava transmitindo uma coisa. Penso que a gente não deve nunca menosprezar a capacidade de pessoas que têm essa qualidade. Não acho que na situação do Brasil exista espaço hoje para o mesmo tipo de retórica que ajudou na ascensão do Lula. Quando ele ganhou a eleição, para o bem ou para o mal, significava coisa nova, o líder operário que chega ao governo. Essa novidade não existe mais.
Como vê o PSDB hoje? Estou muito afastado da vida partidária. Os partidos estão esfrangalhados, está tudo fragmentado. Mas ainda é cedo para dizer o que vai acontecer nos próximos anos. Minha sensação é que haverá um cansaço dessa polarização.
Considerando isso, há espaço para uma candidatura fora da polarização entre Bolsonaro e PT, como a do apresentador Luciano Huck? O Luciano tem de tomar uma decisão: vai deixar de ser celebridade para ser líder político? Celebridade recebe aplauso, líder político, dependendo do caso, recebe pedrada. Precisa entrar na briga. Eu não sei ao certo se o Luciano já tomou essa decisão. Quando você vê as pesquisas, ele está bem. Tem notoriedade, é conhecido, conhece bem o povo. Mas conhece menos as instituições.
Bolsonaro já chamou Huck de candidato da Rede Globo. Bolsonaro é esperto, já definiu o inimigo. Não é Luciano, é a Rede Globo. Não sei o que pensam os donos da emissora sobre essa possível candidatura. Mas tenho a sensação de que não é cômodo para a empresa ter alguém nessa briga sendo considerado candidato da Rede Globo.
O presidente chegará forte a 2022? Bolsonaro procura casca de banana para escorregar. Ele se mete em tudo, cria caso, cria confusão. Então, pode escorregar. Não o estou menosprezando, pois é preciso levar em consideração que ele fala bem a um grupo de eleitores.
Como o senhor gostaria de ser lembrado na história? Fui reconhecido pelo Plano Real, pela questão da estabilização. Esse trabalho começou na minha época de ministro da Fazenda do governo de Itamar Franco, porém se consolidou com a minha chegada à Presidência. Mas o meu governo não foi o que acertou na economia e desprezou o social, como muitos gostam de criticar. O mais difícil é ser reconhecido pela definição de políticas universais para áreas como educação e saúde. Ninguém deu mais terra ao trabalhador que precisava do que o meu governo. Criamos os primeiros programas de bolsa-auxílio — a da escola, a da saúde… O PT teve a esperteza de juntar esses programas no Bolsa Família. Para mim, tão importante quanto isso foi a preocupação institucional. A transição do meu governo para o do Lula foi estudada com a preocupação de manter as regras do jogo. Não sei se isso será reconhecido no futuro. A bem da verdade, não me preocupo muito com isso. Não é meu estilo. Eu pouco atento à memória de mim mesmo. Sou desleixado para essas coisas pessoais.
Publicado em VEJA de 23 de outubro de 2019, edição nº 2657