Pouca gente sabe, mas a compra de respiradores pelo Consórcio Nordeste para o tratamento de pacientes em uma época em que ainda não existiam vacinas contra o coronavírus é um dos casos mais escabrosos da pandemia. Guardado a sete chaves pela equipe do procurador-geral da República Augusto Aras e alvo de chacota durante a CPI por, entre outras coisas, ser a obsessão de parlamentares estridentes e negacionistas, o negócio havia sido pensado, desde o início, para dar errado. A prova mais evidente disso foi anexada a um inquérito sigiloso em tramitação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. Trata-se de uma nota de liquidação de empenho, o equivalente a uma nota fiscal comum, em que o Consórcio afirma que recebeu em “perfeitas condições” 300 respiradores importados da China que nunca sequer existiram.
“Certificamos para fins de Direito que os materiais descritos foram entregues e por nós aceitos em perfeitas condições”, diz a nota de liquidação de empenho para a compra dos ventiladores hospitalares assinada pelo secretário-executivo do Consórcio Nordeste Carlos Gabas, ex-ministro do governo da presidente Dilma Rousseff. A transação, ao custo de 48,7 milhões de reais, envolveu o grupo de governadores e a empresa Hempcare, especializada na venda de medicamentos à base de canabidiol e que não tinha nem experiência nem porte para assumir um contrato desta envergadura – o valor da contratação, por exemplo, é 490 vezes o capital social da companhia. O documento, emitido dois dias antes do pagamento de 34 milhões de reais referentes à primeira parcela à Hempcare, afirma categoricamente que os respiradores, que sequer haviam sido comprados, já tinham até sido entregues aos governadores nordestinos e que funcionavam normalmente, o que, por óbvio, não é verdade.
“Inaugurou-se um modelo licitatório em que a empresa contratada não tinha experiência no objeto contratual, os valores alçam patamares milionários, vidas estão em jogo no aguardo do equipamento respiratório, recursos públicos são pagos antecipadamente, e o resultado dessa mistura de ingredientes não poderia ser outro senão o desperdício de dinheiro público e infeliz desassistência sanitária da comunidade nordestina”, resumiu a subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo, responsável pelo caso no STJ.
A dona da empresa, Cristiana Prestes Taddeo, o governador da Bahia Rui Costa (PT), operadores e agentes públicos são citados no inquérito por suspeita de estelionato, lavagem de dinheiro e fraude em licitação. Procurados, Rui Costa e Carlos Gabas não responderam à reportagem. Cristiana Taddeo informou que não poderia comentar o caso. O Consórcio Nordeste disse, em nota, que partiu dele a denúncia contra “empresários inescrupulosos”, mas não faz menção à nota de liquidação de empenho.