Governo diz que estuda oferecer transporte gratuito no país, mas a conta não fecha
O avanço da medida, segundo especialistas, precisa levar em conta as enormes diferenças de capacidade fiscal e estrutural entre os municípios
Em 1990, a proposta de implantar um sistema de transporte público gratuito e universal foi introduzida no debate público brasileiro pela primeira vez na gestão de Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo. A ideia, porém, não foi para a frente em razão das dificuldades, especialmente orçamentárias, para viabilizar uma gratuidade desse porte numa metrópole como a capital paulista. Trinta e cinco anos depois, o tema volta a circular na agenda nacional, com discussão até sobre implantação nacional, aventada pelo presidente Lula. O debate é alavancado pela crescente adesão de cidades pelo país ao modelo (veja o quadro), mas o desafio pouco mudou em relação aos tempos de Erundina: de onde viria o dinheiro para isso?
Confiando que só o debate do tema pode render a ele alguns pontos de popularidade, Lula pediu ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, um estudo sobre o custo da medida. A previsão é que a análise seja entregue até o final do ano, mas o valor que circula nos gabinetes do governo é de algo em torno de 100 bilhões de reais por ano. Só para ter ideia do quanto isso representa, o Gás do Povo e a Farmácia Popular, juntos, custam anualmente menos de 10 bilhões de reais. O Bolsa Família consome 160 bilhões de reais por ano.
Qualquer análise mais aprofundada sobre os custos é capaz de descartar a ideia, mas o governo diz que pode provar o contrário. O ministério avalia, por exemplo, o uso do vale-transporte — ou seja, ao invés de órgãos públicos e empresas pagarem o auxílio para os funcionários, a verba seria destinada ao programa de transporte gratuito. Como isso não seria suficiente, União, estados e municípios também teriam de contribuir. Ocorre que o transporte hoje já é bastante subsidiado pelo poder público: só na cidade de São Paulo, onde há tarifa zero aos domingos, o valor reservado às empresas como “compensações tarifárias” é de 6,5 bilhões de reais em 2025. Ciente de que será difícil arrancar mais dinheiro dos municípios, a “solução” estudada pelo governo Lula é a de criar uma nova taxa para financiar o sistema. Será difícil emplacar isso também, em um momento em que a sanha arrecadatória do Planalto vem sofrendo forte oposição.
A dificuldade em oferecer transporte gratuito pode ser ilustrada pelo alcance da iniciativa até hoje. No Brasil, 154 municípios têm a isenção tarifária, mas 95 deles têm menos de 50 000 habitantes. A maior cidade é Caucaia (CE), com pouco mais de 350 000 moradores. Ali, houve redução de 23% na oferta de ônibus para conter o crescimento dos custos. O mesmo efeito colateral aconteceu em outras cidades, como Assis (SP). Por outro lado, na cidade cearense houve aumento de 25% no faturamento do comércio e dos serviços. Em São Caetano do Sul (SP), a medida reduziu remarcações de consultas no SUS e o uso de carros por aplicativo e transporte clandestino. Em alguns locais do mundo, a implantação é subsidiada por comércio e serviços para fazer o morador circular mais. Em Dunquerque, cidade de 70 000 habitantes na França, por exemplo, comerciantes pagam uma taxa para financiar o modelo.
O avanço da medida para os grandes centros enfrenta resistências por motivos óbvios. O último embate relacionado ao tema se deu em Belo Horizonte, sexta maior cidade do país, onde a Câmara rejeitou no último dia 3, por ampla maioria, um projeto de lei que implantava a tarifa zero na capital mineira. O prefeito Álvaro Damião (União Brasil) trabalhou pela derrubada da proposta. “Iria gerar desequilíbrio nas contas públicas e incerteza para os agentes econômicos do município”, diz o prefeito. As doze maiores cidades com tarifa zero do país têm 2 milhões de moradores e usam 424 ônibus — para comparação, a cidade de São Paulo tem 13 000 veículos em operação. O único país do mundo a ter transporte público totalmente gratuito é Luxemburgo, mas a nação europeia tem apenas pouco mais de 600 000 habitantes.
O avanço da medida, segundo especialistas, precisa levar em conta as enormes diferenças de capacidade fiscal e estrutural entre os municípios. Além disso, é difícil mensurar quanto demandaria um modelo universal gratuito e qual seria a forma correta de remuneração das companhias. “Ninguém sabe quanto custa a operação de sistema de ônibus no Brasil, a não ser as empresas”, diz Mauro Zilbovicius, professor da Escola Politécnica da USP. O potencial eleitoral da medida é grande. Segundo o Censo, 21,4% da população usa ônibus para ir ao trabalho e os gastos com transporte são o segundo item que mais pesa no orçamento, atrás de alimentação. A agenda política, porém, não deve se sobrepor à responsabilidade orçamentária. Como se sabe, não se resolve um problema criando outro.
Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2025, edição nº 2966








