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Início da vacinação muda jogo político e aumenta pressão sobre Bolsonaro

Imunização contra a Covid-19 no país impõe a ciência ao negacionismo, influencia a opinião pública e arranha imagem do presidente

Por Edoardo Ghirotto, Gabriel Mascarenhas, Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Nonato Viegas Atualizado em 4 jun 2024, 14h17 - Publicado em 22 jan 2021, 06h00

Levou um tempo bem maior do que o necessário, mas o Brasil finalmente deu início à vacinação contra a Covid-19. O primeiro passo ocorreu no domingo 17, no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Tão logo a Anvisa autorizou o uso emergencial de dois imunizantes, o governo paulista realizou uma cerimônia para que a enfermeira Mônica Calazans se tornasse a primeira pessoa a receber a CoronaVac, o fármaco que surgiu como uma aposta do governo de João Doria (PSDB) e foi desenvolvido pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac. Nos dias seguintes, cenas semelhantes foram vistas em vários outros estados. Esse momento histórico representa não só um marco para a ciência brasileira, como também a primeira medida capaz de efetivamente salvar vidas na pandemia. Por mais que o presidente Jair Bolsonaro e o Ministério da Saúde sigam recomendando de forma irresponsável tratamentos precoces e sem comprovação de eficácia para o combate à doença, como a célebre e polêmica cloroquina, somente um amplo e irrestrito programa de imunização poderá interromper a escalada de mortes e, por tabela, reativar a combalida economia brasileira. Até a quinta 21, apenas 105 000 pessoas haviam sido contempladas, mas esses números devem subir rapidamente nas próximas semanas. Os desafios para imunizar todos os brasileiros são enormes, mas o início do programa, ainda que feito a passos trôpegos na parte sob responsabilidade do governo federal (veja matéria na pág. 30), renova as esperanças no país enlutado por mais de 212 000 mortes.

Arte falas Vacina Bolsonaro

A largada da vacinação fez o Brasil se notabilizar ainda como a única nação no mundo em que a chegada dos fármacos se converteu numa notícia ruim para o presidente. Em Israel, por exemplo, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu já imunizou 30% da população de seu país e vem tentando transformar o programa num ativo eleitoral. O presidente turco Recep Tayyip Erdogan foi uma das primeiras pessoas em seu país a receber uma dose da CoronaVac. Por aqui, a fim de rivalizar com Doria, um virtual concorrente ao Palácio do Planalto em 2022, Bolsonaro fez campanha contra a vacinação e, em especial, contra a CoronaVac (veja o quadro). Vinte horas após a aplicação da dose em São Paulo, o capitão falou pela primeira vez sobre o tema, em um tom mal-humorado: “Apesar da vacina… Apesar, não. A Anvisa aprovou, não tem o que discutir mais”, disse, ao se encontrar com apoiadores na saída do Palácio da Alvorada. Ele também tentou investir na narrativa de que o fármaco do Butantan é um produto nacional, contrariando posicionamentos anteriores em que se referia a ele como “vacina chinesa do Doria”. Por fim, voltou a ironizar a eficácia de 50,38%. “Se jogar uma moedinha para cima, é 50% de eficácia”, desdenhou.

Como se não bastasse o discurso irresponsável de Bolsonaro em relação às vacinas, o governo foi tragado para o epicentro de uma crise de enormes proporções com o caos sanitário em Manaus (leia mais na pág. 34) e com as falhas do Ministério da Saúde para garantir a compra e distribuição dos imunizantes (veja matéria na pág. 30). Com essa postura, e o agravamento da catástrofe social e econômica provocada pela pandemia, os índices de popularidade do presidente sofreram reflexos diretos. O instituto de pesquisas Ipespe, em levantamento encomendado pela XP Investimentos, constatou que pela primeira vez desde abril de 2020 a rejeição a Bolsonaro cresceu de 35% para 40%, enquanto sua aprovação caiu de 38% para 32%. “A luz vermelha está a caminho”, diz Antonio Lavareda, presidente do conselho científico do Ipespe.

BARULHO - Manifestantes em Brasília fazem um panelaço: protesto contra o governo e a sua atuação na pandemia -
BARULHO - Manifestantes em Brasília fazem um panelaço: protesto contra o governo e a sua atuação na pandemia – (Sergio Lima/AFP)
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A ministros, Bolsonaro admitiu que jamais pensou que perderia a batalha de narrativas com Doria, mas um monitoramento feito pela Secretaria de Comunicação da Presidência detectou apoio maciço dos brasileiros à imunização e insatisfação generalizada com o atraso na distribuição das vacinas. Panelaços ouvidos Brasil afora e outros levantamentos feitos nos últimos dias mostram que o termômetro do Palácio do Planalto está correto. Um levantamento encomendado por VEJA do Paraná Pesquisas mostrou que cresceu de 61,2% para 65,7% entre setembro e janeiro a fatia da população que pretende se vacinar. Ainda segundo o Paraná Pesquisas, 35,1% dos brasileiros consideram Bolsonaro o principal culpado pelo atraso na vacinação. Nas redes sociais, território onde Bolsonaro sempre teve o domínio, houve estragos evidentes. Em um trabalho exclusivo para VEJA, a Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV apontou que no Twitter houve 2,1 milhões de menções às vacinas entre os dias 17 e 18, sendo que apenas 6,4% dos perfis envolvidos nessa discussão estavam alinhados com o governo. O negacionismo do capitão também foi derrotado no Facebook. O Monitor do Debate Político no Meio Digital, liderado por pesquisadores da USP, constatou que as vacinas corresponderam a 27% de todas as publicações feitas em páginas públicas da rede social no dia 17. Postagens de cunho bolsonarista corresponderam a só 14% do volume total do que foi publicado sobre o tema, enquanto os compartilhamentos da oposição ao governo foram de 29%. “Assim como no Twitter, ficou claro no Facebook a tentativa improvisada dos bolsonaristas de mudar a narrativa que haviam criado para desmerecer a CoronaVac”, afirma Marcio Moretto, um dos responsáveis pelo estudo. Enquanto Bolsonaro apanha no meio digital, Doria colhe os proveitos da exposição que a vacina lhe trouxe. Em apenas três dias, o tucano ganhou 22 000 novos seguidores no Twitter, segundo a Bites Consultoria.

arte pesquisa vacina

Os arranhões na imagem do presidente não significam necessariamente que sua popularidade vai derreter em ritmo acelerado. Na recente pesquisa da XP, aliás, em cenários para 2022, ele continua à frente dos rivais na simulação de primeiro turno e só perde para seu ex-ministro Sergio Moro no segundo.

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ALVO - Protesto no Distrito Federal: grupo infla um boneco do presidente Jair Bolsonaro em frente ao prédio da Anvisa -
ALVO - Protesto no Distrito Federal: grupo infla um boneco do presidente Jair Bolsonaro em frente ao prédio da Anvisa – (Andre Borges/Getty Images)

Apesar de contar ainda com um público fiel, Bolsonaro acusou o golpe sofrido nos últimos dias e, na tentativa de virar o jogo, aprovou o lançamento de uma campanha publicitária, a maior do governo, orçada em cerca de 50 milhões de reais, para defender um “Brasil imunizado” e a ideia de “uma só nação”. Uma outra ideia em gestação no Palácio do Planalto, de mais difícil execução, é vacinar Bolsonaro diante das câmeras de TV, como forma de reconhecer que a medida é essencial. Falta combinar com o capitão, claro. Ele só se sujeitaria a encenar o papel diante da plateia caso o imunizante fosse o patrocinado pelo governo federal, o da Oxford/AstraZeneca, aquele que Eduardo Pazuello, o Ministro da Saúde, disse que traria para o Brasil da Índia no fim de semana passado, mas não trouxe.

A situação de Pazuello, aliás, tem provocado também desgastes internos e respinga no presidente, que ainda defende o subordinado. A auxiliares, Bolsonaro declarou que Pazuello é um “fiel aliado e cumpre todo o combinado”. Pois tal insistência com ele pode cobrar um preço alto. Militares ouvidos por VEJA relatam uma insatisfação crescente com a permanência do general na Esplanada, sobretudo diante das falhas de gestão. Pazuello já recebeu recados da cúpula do Exército de que o melhor caminho, se insistir em continuar ministro, é ir para a reserva. Seria uma forma de tentar dissociar a imagem das Forças Armadas do descalabro administrativo em curso. O ministro resiste.

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***ATENÇÃO***NÃO REUTILIZAR ESTA IMAGEM, SUJEITO A COBRANÇA POR USO INDEVIDO***FOTO EXCLUSIVA PARA A UTILIZAÇÃO APENAS NA REVISTA VEJA***
RESISTÊNCIA - Técnico do Butantan em 1987: tradição contra o negacionismo – (Homero Sérgio/Folhapress/.)

Pazuello não é o único foco de discordâncias graves hoje dentro do governo. Enquanto Bolsonaro busca reagir à derrota que sofreu com a vitória da vacina, os seus principais auxiliares tentam encontrar culpados e trocam acusações. Os militares, capitaneados pelo chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, põem a maior parte do problema na conta da comunicação do governo, chefiada pelo ministro Fábio Faria. Bastante irritado, Heleno explicitou sua insatisfação abertamente numa reunião na segunda 18. A manifestação provocou desconforto em Faria e seus comandados.

Nesse cenário de confusão e troca de torpedos na coxia presidencial, não há como negar que o assunto impeachment voltou à pauta. Parte do entourage do presidente considera praticamente nula a possibilidade de um processo do tipo prosperar. Mas nada garante que esse cenário não possa mudar. Integrantes do núcleo duro de apoio a Bolsonaro avaliam que a eventual vitória de Baleia Rossi (MDB-SP), candidato da oposição na disputa pelo comando da Câmara, elevaria a possibilidade de um processo de impeachment ganhar tração. “Se Baleia ganhar, pode ser o início da tempestade perfeita com a qual a oposição sonha”, admite um ministro próximo ao presidente. Em conversas reservadas, integrantes do STF, que podem ser chamados a se manifestar sobre o tema, mostram-se céticos quanto ao sucesso da iniciativa. “O impeachment é como a bomba atômica. Normalmente, não é para ser usado”, afirmou um ministro do Supremo a VEJA.

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MISSÃO - Fiocruz: sediada no Rio, a instituição produzirá vacina de Oxford no país -
MISSÃO - Fiocruz: sediada no Rio, a instituição produzirá vacina de Oxford no país – (Bernardo Portella/Bio-Manguinhos/.)

Enquanto tratam com a devida cautela a questão do impedimento, os integrantes do STF reclamam nos bastidores da apatia do chefe do Ministério Público, Augusto Aras, e dos procuradores para cobrar judicialmente o presidente e Pazuello pelas decisões e omissões administrativas que, segundo os magistrados, contribuíram para o agravamento da pandemia. De acordo com os ministros do Supremo, ações propostas pelo MP, mesmo que não resultem em condenações judiciais, serviriam como fator de pressão para fazer o governo se mexer. Aras evita quanto pode uma cobrança mais efetiva ao governo. Em nota, ele disse que cabe ao Congresso abrir processos por crime de responsabilidade contra o presidente. Foi uma tentativa de desviar o foco, já que o impeachment é, sim, atribuição do Legislativo, mas outras formas de cobrança podem ser feitas pelo MP.

Não faltaram avisos ao presidente sobre os riscos de sua teimosia durante a crise. A voz mais equilibrada do núcleo político, Fábio Faria, em mais de uma ocasião, sugeriu a ele cessar ataques públicos à vacina. Um outro aliado palaciano questiona: “Como explicar que o governo comprou a CoronaVac depois de passar oito meses criticando a CoronaVac?”. A postura presidencial, tão determinante na construção de barreiras que atrapalharam as negociações para a compra de imunizantes, revelou-se antes mesmo da chegada da pandemia. Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde e hoje integrante da lista negra de Bolsonaro, lembra de um episódio ocorrido em meados de 2019. O Butantan o procurou para pedir que o governo federal financiasse estudos de uma vacina contra a dengue. Mandetta voltou a Brasília crente de que levaria uma grande notícia ao chefe: a possibilidade de capitalizar a descoberta de um imunizante para uma doença que mata brasileiros todos os anos. De acordo com Mandetta, de pronto Bolsonaro já se mostrou resistente a entrar num projeto em sociedade com um braço do governo paulista.

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Na base da persistência e na crença da força do conhecimento, não é de hoje que profissionais de instituições como Butantan e Fiocruz buscam permanentemente antídotos contra os males da política. Em 1899, um surto de peste bubônica que se propagava a partir do Porto de Santos levou a admi­nis­tra­ção pública estadual a criar um laboratório de produção de soro em um local então conhecido como Fazenda Butantan — houve muita grita e sabotagem, mas o médico Vital Brazil, escolhido para liderar a empreitada, seguiu em frente. A Fiocruz surgiu em 1900, nascida como Instituto Soroterápico Federal, dirigido pelo jovem bacteriologista Oswaldo Cruz, de apenas 28 anos. Em 1904, ele enfrentaria a chamada Revolta da Vacina, deflagrada por camadas da população que não queriam receber o fármaco contra a varíola. Durante a ditadura militar, na década de 70, dez cientistas da Fiocruz foram cassados e perseguidos pelo Exército. Conhecido como o Massacre de Manguinhos, nome do bairro do Rio de Janeiro onde se localiza a sede do instituto, eles tiveram de se aposentar compulsoriamente e ficaram proibidos de trabalhar para qualquer repartição pública do país. O grupo defendia a produção científica livre e criticava a submissão das instituições públicas do país aos interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos. Os cientistas foram reintegrados à instituição somente em 1986, com a redemocratização. Por causa desse passado, Bolsonaro, sempre saudoso dos anos de chumbo, já se referiu à Fiocruz por mais de uma vez em conversas reservadas como um “antro de esquerdistas”. Ironicamente, é o trabalho dessa fundação que representa hoje o bálsamo de esperança do presidente para apresentar um imunizante que leve o selo do governo federal. A aprovação das vacinas contra a Covid foi apenas o capítulo mais recente de uma batalha centenária de Butantan e Fiocruz contra posturas negacionistas. Para o bem do Brasil, felizmente, a ciência está ganhando mais uma vez essa disputa. Que venham logo mais vacinas!

Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722

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