Quando deixou o Palácio do Planalto, onde foi recebido no último dia 9, após uma visita a Jair Bolsonaro, Francisco Dalmora Burgardt, conhecido como Chicão Caminhoneiro, fez questão de dizer que o presidente não havia pedido a desmobilização da categoria, que bloqueava rodovias em quinze estados, embalados por uma pauta que incluía o pedido de impeachment de ministros do Supremo e o voto impresso. Ladeado por governistas como os deputados Vitor Hugo (PSL-GO) e Carla Zambelli (PSL-SP), o até então anônimo fez o relato do seu encontro a dezenas de veículos de imprensa.
A cena inusitada colocou em evidência outro personagem do submundo do bolsonarismo e chamou a atenção para outro fator: natural de Canoinhas, em Santa Catarina, ele é mais um a liderar demonstração pública de apoio político ao presidente com raízes naquele que é o estado mais bolsonarista do país.
A relação de Bolsonaro com Santa Catarina é tão antiga quanto o bolsonarismo. Na eleição de 2018, o estado deu ao capitão 66% dos votos no primeiro turno (maior porcentual do país) e 75% no segundo (atrás apenas do Acre) e elegeu um governador do PSL, Carlos Moisés, que nunca havia disputado um cargo na vida. O amor foi recíproco. O presidente já foi dez vezes ao estado, metade neste ano, como nos passeios de moto que promoveu em Florianópolis e Chapecó (cidade que elegeu como modelo de “eficácia” da cloroquina contra a Covid-19). Os filhos também vão com frequência a Santa Catarina. Carlos e Eduardo frequentaram durante bastante tempo um clube de tiro em São José. Em agosto Eduardo esteve em Joinville, que ele chama de “Texas brasileiro”, para visitar uma feira de armas. Não custa lembrar que Luciano Hang, dono da Havan e símbolo de empresário das hostes governistas, é de Brusque. Com tudo isso, o estado é um dos poucos onde Bolsonaro venceria o ex-presidente Lula em 2022 — 39% a 22%, segundo pesquisa da Quaest de agosto.
Muitos desses apoiadores catarinenses, porém, já começam a se enrolar com a Justiça. Entre os dez alvos do inquérito que apura a organização dos atos antidemocráticos do Dia da Independência, sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, estão Marcos Antônio Pereira Gomes, o Zé Trovão (que é de Joinville e se encontrava foragido no México até a última quinta 16), e os empresários Turíbio Torres, também de Joinville, e Juliano Martins, da vizinha São Francisco do Sul — recebidos no Planalto um dia antes do encontro do presidente com o cantor Sérgio Reis, que também é alvo da Justiça. Há ainda Alexandre Raitz Petersen, empresário de Joinville, do portal Brasil Livre e presidente da Coalizão Pró-Civilização Cristã. Ele ajudou a arrecadar dinheiro para os atos e envolveu-se em sua organização com Luís Mozzini, que tem empresa em Florianópolis e agencia shows de Sérgio Reis, e o próprio Chicão Caminhoneiro. Outro catarinense sob suspeita é o secretário da Pesca, Jorge Seif Júnior. As investigações tentam estabelecer a sua relação com os organizadores dos atos — atribui-se ao prestígio de um dos auxiliares mais queridos de Bolsonaro (ciceroneou o presidente nas férias de dezembro de 2020 e fevereiro de 2021 em Santa Catarina) a abertura de portas no Palácio do Planalto.
O conservadorismo político é antigo em Santa Catarina. Historicamente, se expressou na preferência por políticos à direita, como os ex-governadores Jorge Bornhausen e Esperidião Amin, com raízes na Arena, o partido da ditadura. “Esse tipo de liderança com esse perfil ideológico impactou na formação do sistema partidário do estado. Essas legendas têm estruturas consolidadas nos municípios, bases sociais já formadas”, explica Julian Borba, professor de ciência política da UFSC. Ele cita ainda outro componente: o modelo de desenvolvimento do estado. “Todo o processo de industrialização e urbanização se deu a partir de médios e pequenos municípios. O conservadorismo se prolifera em contextos mais rurais”, diz. É por essa razão que temas frequentes no discurso de Bolsonaro como a defesa do agronegócio, de armas, da propriedade privada, da religião e da família calam fundo entre os catarinenses.
Há alguns, no entanto, dispostos a discutir a relação. A bancada do estado se queixa de que as visitas frequentes não têm se convertido em benefícios. Santa Catarina é o quinto estado que mais arrecadou impostos federais em 2021 (53 bilhões de reais) e apenas o 15º no recebimento de repasses (7,4 bilhões de reais). “Somos injustiçados e muitas vezes o governo federal não nos olha com o zelo que merecemos”, afirma o senador Jorginho Mello (PL-SC), mesmo assim um dos mais ferrenhos defensores do Planalto no Congresso. Afora as bravatas, os compromissos ideológicos e a propaganda política, além das férias e passeios de motos, Bolsonaro precisa tomar cuidado com o número de catarinenses investigados e as críticas até de aliados, sob o risco de que o amor acabe virando um relacionamento tóxico.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756