“Diplomacia da canelada” é a expressão coloquial usada nas relações internacionais para explicar comportamentos como o do futuro chanceler Ernesto Araújo. Antes de assumir, ele deu mostras de que não cumprirá o protocolo básico do cargo — construir pontes, em vez de implodi-las. Inicialmente, publicou artigo em que afirma que não será um “ministro das relações envergonhadas” de Jair Bolsonaro e que libertará o Itamaraty da “ideologia marxista”. Depois, numa série de tuítes, criticou a ONU e anunciou a iminente saída do Brasil do Pacto Global de Migração. O conjunto da obra foi arrematado com o desconvite, também via Twitter, de três chefes de Estado para a cerimônia de posse de Bolsonaro: Nicolás Maduro, da Venezuela; Miguel Díaz-Canel, de Cuba; e Daniel Ortega, da Nicarágua.
A justificativa foi a “defesa da liberdade e da democracia”. “A posse do presidente Bolsonaro marcará o início de um governo com postura firme e clara na defesa da liberdade. Com esse propósito e frente às violações do regime de Daniel Ortega contra a liberdade do povo da Nicarágua, nenhum representante desse regime será recebido no evento do dia 1º”, escreveu Araújo, no domingo 23. Uma semana antes, ele rechaçara o presidente venezuelano, alegando que “não há lugar para Maduro numa celebração da democracia”. Em seguida, o próprio Bolsonaro anunciou o desconvite ao cubano Díaz-Canel.
Como um elefante em loja de cristais, Araújo inaugura uma nova era na política externa. Nela, a incompatibilidade ideológica transcende as relações comerciais e diplomáticas. “Nenhum presidente, desde a redemocratização, deixou de convidar representantes de países com os quais o Brasil mantém relações diplomáticas, independentemente do matiz ideológico”, diz Maurício Santoro, professor de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. “Pior do que não convidar é desconvidar”, afirma o diplomata Rubens Barbosa, lembrando que a equipe de Bolsonaro havia orientado o Itamaraty a seguir a praxe dos convites, qual seja, estendê-los a todos os países com os quais o Brasil se relaciona.
Ao lançar mão da “canelada”, Araújo não só ignorou o saldo positivo da balança comercial do Brasil com os três países — sobretudo a Venezuela, em que o superávit brasileiro é de pelo menos 380 milhões de dólares em 2018 — como também abdicou de um possível posto de liderança regional na condução de uma solução para a crise humanitária no país vizinho. É certo que os três países desconvidados não representam um ideal democrático — ao contrário, são ditaduras. Mas esse critério colado a cores políticas não tem sido usado por nenhuma nação na hora de convidar líderes para inaugurações presidenciais. É uma novíssima jabuticaba brasileira. Donald Trump, em quem Bolsonaro e Araújo se inspiram, ao ser diplomado, fez o que era praxe: convidou todas as embaixadas de países com os quais os Estados Unidos se relacionam. Se o novo critério para convites fosse realmente a defesa da democracia, haveria coerência se Bolsonaro vetasse também a China, o maior parceiro comercial do Brasil, com superávit de pelo menos 26 bilhões de dólares em 2018 — é um desconvite que requer coragem.
Publicado em VEJA de 2 de janeiro de 2019, edição nº 2615