Membro intocável de uma espécie em extinção nos bastidores de palácios, gabinetes e diretórios partidários Brasil afora, o ex-prefeito Gilberto Kassab, fundador e presidente do PSD, sempre foi conhecido por ser uma raposa política, com enorme senso de oportunidade e visão de longo alcance. Habilidoso e avesso a grandes aparições, apoiou Dilma Rousseff, em 2014 (foi ministro das Cidades), e seu sucessor, Michel Temer, ao qual serviu como ministro de Ciência, Tecnologia e Comunicações. Na eleição seguinte, a de 2018, embarcou na canoa furada de Geraldo Alckmin (então no PSDB) e quatro anos depois sonhou ter o próprio candidato a presidente. Para isso, fracassou ao tentar emplacar nomes de seu PSD, como Rodrigo Pacheco, Eduardo Paes e Alexandre Kalil. Fora de suas fileiras partidárias, buscou o gaúcho Eduardo Leite (PSDB), o capixaba Paulo Hartung (sem legenda) e Alckmin, também sem sucesso. A menos de seis meses das eleições, com seus filiados livres para apoiar quem quisessem na corrida ao Palácio do Planalto, o cacique chegou a ser dado como um derrotado. Ele havia perdido o toque de Midas, diziam os detratores.
A última ficha foi colocada na aposta da então incipiente candidatura paulista de Tarcísio de Freitas (Republicanos), ex-ministro de Jair Bolsonaro, carioca de nascimento, estranho ao eleitorado de São Paulo e pouco conhecedor do estado. Eis que novamente Kassab riu por último. Ele não só viu a sua aposta prosperar, como será o secretário de Governo de São Paulo, posto-chave de comando no estado mais rico do país, que foi exercido pelo hoje governador Rodrigo Garcia quando era vice de João Doria. Além de emplacar o vice-governador (Felicio Ramuth) e o chefe da transição (Guilherme Afif Domingos), posição estratégia na montagem do governo, Kassab ainda terá aliados no comando das pastas de Saúde (Eleuses Paiva) e Educação (Renato Feder), que juntas têm orçamento anual superior a 70 bilhões de reais, mais que o total de estados como Paraná (60 bilhões de reais) e Pernambuco (43 bilhões de reais).
Não foi pouca coisa, mas Kassab e seu partido querem mais. Ao mesmo tempo que ocupa os espaços no governo paulista, o partido acaba de embarcar na base aliada de Luiz Inácio Lula da Silva, a quem empenhará o relevante apoio de 42 deputados federais e onze senadores. A opção pode render dois ministérios, além do apoio do PT à recondução de Rodrigo Pacheco à presidência do Senado. “Não negocio cargos com Lula”, desconversa Kassab. “Meu projeto pessoal é o Tarcísio”, afirma (veja a entrevista).
Politicamente, o ex-prefeito de São Paulo ganhará um novo status a partir de 2023. Além de presidente nacional do PSD, ele terá um importante papel de articulador político no Palácio dos Bandeirantes. Como secretário de Governo, vai gerenciar a relação do Executivo com os deputados estaduais, uma função importantíssima para Tarcísio, que assume o estado após 28 anos de gestões consecutivas do PSDB — que sempre teve maioria na Assembleia Legislativa. Mas não só: Kassab também se credencia para ser o elo entre a administração paulista e o governo federal, uma inusitada ponte política entre o principal bastião do bolsonarismo e o petismo. Outro ofício, determinado por Tarcísio, vai ao encontro de um de seus maiores desejos: com a extinção da Secretaria de Desenvolvimento Regional, ficará a cargo de Kassab a interlocução com os prefeitos — uma ferramenta importantíssima para estabelecer um domínio eleitoral consistente no estado.
Kassab, com isso, começa a preparar terreno para a eleição municipal de 2024. Mais do que ouvir demandas dos 645 prefeitos, o futuro secretário enxerga uma grande fenda de oportunidade para ocupar um vigoroso espaço que o PSDB perderá. O homem forte de Tarcísio tem um plano ambicioso de construir ou atrair nomes viáveis em grandes regiões do estado e fazer o maior número possível de prefeitos. A ideia é ter uma presença orgânica do seu PSD, como já ocorre no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e no Paraná. Mas há um porém: o chefe é Tarcísio e caberá a ele, que está no Republicanos, estruturar as campanhas municipais. O caminho aventado por aliados de Kassab é um só: o futuro governador deverá migrar para o PSD. “Não houve convite nenhum nesse sentido e não conversamos sobre isso”, desconversa o cacique. Inegavelmente, o sucesso da gestão em São Paulo servirá ainda a Kassab para ter um aliado forte na disputa à Presidência em 2026.
Até lá, no entanto, embora esteja empoderado no Palácio dos Bandeirantes, o presidente do PSD terá de disputar com outros políticos nacos de poder no estado. Como Tarcísio carregou na campanha a bandeira do apoio de Jair Bolsonaro, a fatura do apoio do presidente já começou a ser cobrada. O PL, partido do capitão, ficará com a Secretaria da Segurança Pública, uma área estratégica para o discurso eleitoral bolsonarista. A decisão foi costurada com Eduardo Bolsonaro, deputado federal que esteve com a equipe de transição logo no primeiro dia de trabalho. Outras secretarias estão sendo estudadas para o partido, mas o martelo ainda não foi batido. Um agrado adicional deve ser o apoio do governo para que o PL, que elegeu o maior número de deputados estaduais (dezenove), comande a Assembleia. Já o Republicanos de Tarcísio teve até agora um único nome anunciado: o pastor e deputado federal Roberto Lucena ficará com o Turismo. Tarcísio diz que só aceitará secretários que tiverem conhecimento técnico. Para isso, junto com a indicação política, ele pede o currículo do candidato — na última semana, o presidente do Republicanos, Marcos Pereira, chegou com sete deles debaixo do braço.
Se abre espaço aos partidos que o apoiaram desde o início, Tarcísio ainda não fez o mesmo gesto ao PSDB — o governador Rodrigo Garcia deu apoio “incondicional” a ele e a Bolsonaro no segundo turno. Por isso os tucanos jogaram a toalha quanto à possibilidade de terem uma grande secretaria. A pretensão agora é manter a superintendência do Sebrae-SP com o presidente estadual do PSDB, Marco Vinholi. Outra legenda que não anda satisfeita é o União Brasil, que também só apoiou Tarcísio no segundo turno. Um dos principais membros da sigla no estado, Milton Leite, que é presidente da Câmara paulistana, faz questão de tornar público o descontentamento pela falta de espaço na nova gestão do Bandeirantes. Ele culpa o presidente do PSD. “O Kassab quer tomar conta do governo”, diz o político, cujo partido tem oito deputados estaduais.
A gestão que se desenha a partir de 2023 no governo paulista será a primeira após o fim da mais longa hegemonia política da história do país e será comandada por um político que nunca havia disputado uma eleição. Kassab volta a ter cargo de secretário após a tentativa frustrada de comandar a Casa Civil no governo de João Doria. Em 2018, a três dias da posse, ele desistiu de assumir após ter sido alvo de ação de busca e apreensão em ação que apura suspeitas de corrupção a partir de uma delação feita por executivos da JBS. O processo continua tramitando na Justiça, mas não causa agora o mesmo constrangimento. Kassab apostou alto em Tarcísio e agora quer fazer da sua “operação Bandeirantes” um trampolim para voos mais altos na política.
Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818