Os políticos nacionais não são exatamente conhecidos pelo zelo no trato com o dinheiro público e, embora estejam longe dos melhores padrões de produtividade, trabalham firme na hora de criar regras que os beneficiam e permitem a perpetuação de castas de poder em Brasília. Dentro da longa lista de distorções criada por esse sistema ao longo da história, incluídas aí as emendas parlamentares, chama atenção no momento o apetite por fatias cada vez maiores do orçamento federal para encorpar os fundos partidário (destinado ao custeio da operação das legendas) e eleitoral (distribuído para bancar as campanhas). Em 2022, com novo pleito marcado para outubro, essas duas fontes de receita somam impressionantes 6 bilhões de reais. A cifra recorde é quase 200% maior do que a de 2018.
O problema fica ainda mais cabeludo quando se põe uma lupa sobre como esse dinheiro vem sendo gasto. No caso da fatia destinada a gastos eleitorais, já é farta a literatura de maracutaias, com destaque para as candidaturas-laranjas. Em termos de uso escandaloso, no entanto, o Fundo Partidário não fica muito longe. Conforme demonstra um extenso levantamento feito por VEJA nas despesas dos diretórios nacionais das siglas em 2021, a partir de informações fornecidas por elas próprias ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), parte significativa desses gastos, que totalizaram quase 1 bilhão de reais no ano passado, vem sendo usada para permitir que os políticos desfrutem de voos de jatinho, transporte por carrões e uso de mansões. Ironia das ironias, eles ainda garantem a contratação de alguns dos melhores advogados da praça para defendê-los de acusações por corrupção — ou seja, o dinheiro público serve para livrar da Justiça os acusados de roubar dinheiro público.
Nessa lista de abusos, as diárias em hotéis de luxo ocupam um lugar de destaque. O Emiliano, um dos mais tradicionais e exclusivos de São Paulo (a diária pode chegar a 3 000 reais), virou pouso predileto dos políticos do PTB. Foram 129 000 reais gastos pela sigla no estabelecimento, um dos endereços preferidos de Roberto Jefferson, presidente licenciado da agremiação (detido desde agosto por ataques ao STF, ele recebeu na última segunda, 24, direito a ficar em prisão domiciliar devido a problemas de saúde). Questionada por VEJA, a direção do PTB, dando de ombros para a extravagância, afirmou que a escolha de local onde hospeda seus integrantes é ato de autonomia do partido. As faturas do Emiliano ajudaram a colocar o partido como o campeão de despesas no quesito hospedagem: 443 130 reais, mais que o dobro do segundo colocado, o PT (196 513 reais).
Os desembolsos com viagens também forçam os limites do que seria razoável. Ao todo, as legendas gastaram 7,9 milhões de reais com o deslocamento aéreo de seus membros. O pior exemplo vem do Progressistas, partido do chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, um dos líderes do Centrão. A sigla desembolsou 1,2 milhão de reais só com o fretamento de aeronaves, uma quantia que posiciona a legenda no primeiro lugar desse tipo de despesa — que inclui também a compra de passagens aéreas. O PP afirma apenas que o uso dessas aeronaves atendeu às demandas de membros da legenda. Na sequência das agremiações que mais gastaram com o serviço vem o PT, que despendeu 826 805 reais com empresas de táxi-aéreo, como a que levou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o seu périplo eleitoral pelo Nordeste em agosto.
As mordomias nas viagens são por ar e também por terra. Um exemplo: no ano passado, o PSL gastou 660 799 reais com a aquisição de três carros. O partido não divulgou quais modelos adquiriu, mas obviamente não foram modelos populares. Questionada por VEJA, a sigla disse apenas que a despesa se deu para substituir automóveis antigos “a fim de evitar maior depreciação” e que os carrões são para “atividades administrativas”. O Republicanos também embarcou na farra: pagou 271 990 reais por um só veículo, mas informou a VEJA que usou recursos próprios para quitar a despesa, embora não tivesse dito de onde saiu o dinheiro — o Fundo Partidário é de longe a principal (em alguns casos, exclusiva) fonte de recursos das legendas.
Outra modalidade de uso questionável do dinheiro público é pagar caríssimos advogados para defender dirigentes acusados de crimes. Em 2019, o TSE havia determinado que os partidos não poderiam usar o fundo para esse serviço. Mas a lei acabou sendo alterada para permitir explicitamente essas despesas. No ano passado, o Solidariedade transferiu 300 000 reais para o escritório que defende o seu presidente, Paulinho da Força, acusado de corrupção pela Lava-Jato — ele nega irregularidades e diz que os serviços são separados. O PSD, por sua vez, pagou 407 500 reais ao advogado que defendeu o seu dirigente máximo, Gilberto Kassab, no processo em que ele também era acusado de corrupção pela operação, após delação do empresário Wesley Batista, dono da JBS — o caso acabou indo para a Justiça Eleitoral. O partido afirma que o advogado Thiago Fernandes Boverio atuou apenas no início da ação (embora tenha sido o único defensor registrado no processo) e que o PSD é contra a liberação estabelecida na atual legislação.
Como se as mordomias já não fossem um absurdo, há ainda um duto de dinheiro que vai direto para o bolso dos dirigentes e da burocracia partidária. Não é exagero dizer que esses são, de fato, os “profissionais da política”. Os caciques, em especial aqueles sem mandato, receberam no ano passado salários que frequentemente superaram os 30 000 mensais. Eles podem também ser contratados como prestadores de serviço para os partidos, outro absurdo. O ex-deputado Roberto Jefferson, afastado da presidência do PTB após ser preso, recebeu 278 589 reais desse modo no ano passado, por meio de pagamentos que ocorreram mesmo após ele ter sido levado à cadeia.
O uso de dinheiro público para financiar partidos políticos não é uma exclusividade brasileira. Na Europa, países como Bélgica, França, Alemanha, Portugal e Espanha seguem o mesmo caminho. A justificativa é que isso reduz — ou afasta — os interesses materializados pelo dinheiro de grupos empresariais. No Brasil, o argumento ganhou força no vácuo dos exageros da Operação Lava-Jato, que ajudou a criminalizar o financiamento privado de campanhas, até sua proibição em 2015. Com isso, o país ingressou no pior dos cenários. De um lado, perdeu a oportunidade de aperfeiçoar o sistema anterior. Do outro, entregou nas mãos dos beneficiários a decisão de quanto eles vão receber.
Uma das democracias mais maduras do mundo, a dos Estados Unidos, mantém o financiamento privado e os partidos de lá gastam grande energia na fase de captação dos recursos, sem ter de recorrer aos cofres públicos — tudo isso feito às claras, sem demonizar os lobbies legítimos de setores empresariais. No nosso caso, adotamos um sistema misto, público e privado, sem ter os mecanismos ideais para barrar e punir abusos. Lá fora, por exemplo, os deslizes não ficam impunes. Os deputados que atuam no Parlamento Europeu fazem uma cuidadosa prestação de todos os seus gastos, garantindo que tenham relação com a atividade partidária. “As siglas cumprem essas regras, porque a punição é a perda do financiamento. Se isso acontece, estão fora do jogo”, diz Ana Claudia Santano, coordenadora da organização Transparência Eleitoral Brasil.
Evidentemente, o apetite dos partidos pelo dinheiro público é um mal que só tende a crescer. E existe uma razão meio ridícula para isso: são eles mesmos que determinam essa expansão. A Lei dos Partidos Políticos, que criou o Fundo Partidário, é de 1995, mas ela já sofreu cinco reformas desde então, sempre de modo a permitir mais gastos. Uma mudança ocorrida em 2019 estabeleceu que as legendas poderiam investir na compra de carros e até de aeronaves próprias. Não parou por aí. Agora, há uma discussão no Senado, onde tramita mais uma reforma já aprovada na Câmara, para a inclusão do item “outros” (ou seja, a tentativa é de abrir de vez a porteira).
Colabora para a sanha perdulária dos dirigentes partidários a dificuldade do TSE para conseguir analisar todas as contas. Há um entendimento na Justiça Eleitoral de que gastos luxuosos devem ser rejeitados. Desde 2010, no entanto, das 349 prestações enviadas pelos diretórios nacionais, o TSE conseguiu analisar apenas 107, a maior parte com dados de cerca de uma década atrás. Dos relatórios analisados, os técnicos encontraram problemas em 75, que foram aprovados com ressalvas. Outros 28 foram rejeitados total ou parcialmente (mas nada que questionasse o investimento de dinheiro público em privilégios desnecessários). Uma dificuldade significativa na punição das extravagâncias, na avaliação da advogada e contadora Denise Goulart, da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, é que os juízes não podem entrar no mérito dos gastos, uma vez que isso é vedado pela legislação. “Dessa forma, eles precisam encontrar nos gastos luxuosos desvios da chamada atividade-fim dos partidos”, completa a especialista.
Há nas contas, no entanto, situações em que a linha entre moralidade e legalidade é ainda mais tênue. É o que ocorre com a contratação pelas siglas de prestadores de serviço que estão incluídos no cadastro federal de empresas inidôneas, que são impedidas de firmarem contratos com o poder público. Só no ano passado, nove partidos pagaram 442 000 reais a companhias nessa situação. Um deles foi o PSDB. A sigla pagou 130 600 reais a uma terceirizada responsável pela limpeza da sede da agremiação. “Não há qualquer impedimento para a realização de contrato entre a empresa e o partido, que é uma instituição de direito privado”, afirmou o PSDB, em nota. A rigor, a legenda se beneficia de uma autorização legal difícil de engolir: apesar de o Fundo Partidário ser composto de dinheiro público, tais recursos não se submetem ao regime da Lei de Licitações e os partidos gozam de autonomia para fazer contratos, mesmo com empresas que as autoridades consideram inidôneas. “Conforme convém, os partidos ora são públicos, ora são privados. É algo bastante conveniente para os donos das legendas. A responsabilidade com o dinheiro público nunca é obedecida”, critica Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção.
Cheio de falhas, o sistema tem ainda uma espécie de “buraco negro” que dificulta a fiscalização do uso dos recursos do contribuinte. Quase um quarto dos 571 milhões de reais gastos pelos diretórios nacionais foi para as chamadas fundações partidárias, entidades que não se submetem ao mesmo crivo da Justiça Eleitoral. Devem apenas entregar uma prestação de contas em papel, para análise sabe-se lá quando. O Republicanos, que fez de sua fundação uma faculdade que reconhecida pelo Ministério da Educação em 2018, é quem mais gasta proporcionalmente com esse tipo de entidade: 59% de suas despesas têm essa destinação. A instituição de ensino, porém, cobra mensalidades.
Vale destacar uma exceção. Na contramão da farra com os recursos do Fundo Partidário, o Partido Novo é o único a não viver dessa fonte de recursos. Do pouco mais de 29 milhões de reais que o partido recebeu do TSE no ano passado, foram gastos apenas 5,9 milhões, uma vez que há despesas obrigatórias (como 5% do total destinado a mulheres e 20% destinado às fundações partidárias). Mas, embora a fração com as mulheres seja empenhada em cursos, como manda a lei, a parcela transferida à Fundação Brasil Novo fica aplicada, assim como o restante dos recursos — o dinheiro está investido em renda fixa, rendendo juros. “Já fizemos diversas consultas ao TSE solicitando uma viabilidade contábil para devolver esse valor para os cofres públicos, ainda sem uma resposta definitiva”, disse a VEJA o presidente do partido, Eduardo Ribeiro. Até lá, o Novo contabiliza 86,8 milhões de reais aplicados no sistema financeiro. “Quando conseguirmos, devolveremos o valor com os rendimentos acumulados”, completa Ribeiro. Só no Brasil.
Com muitos interesses (e beneficiários) envolvidos, os fundos financiados com o dinheiro do contribuinte devem continuar a crescer nos próximos anos. Haveria, evidentemente, soluções para reduzir o desperdício dessas verbas e eliminar esse disparate. Além de uma nova discussão sobre financiamento privado, o aumento da exigência na aprovação de orçamentos e o reforço das equipes de auditoria poderiam, ao menos, evitar as extravagâncias relatadas nesta reportagem. Infelizmente, enquanto a situação não é enfrentada da maneira adequada, o principal controle está nas mãos dos eleitores, que têm o poder de decidir quais políticos e legendas possuem maior responsabilidade para manejar o dinheiro público. Mas os gastos revelados por VEJA mostram que, até aqui, boa parte dos partidos brasileiros merece ser reprovada nesse tema.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774