Linha-dura com o governo, Rosa Weber terá papel decisivo nas eleições
A ministra, que assumirá a presidência do STF no dia 12, tem nas mãos casos como a ação que apura supostos crimes de Bolsonaro em reunião com embaixadores
Como se sabe, o presidente Jair Bolsonaro (PL) tem o mau hábito de empilhar desavenças com integrantes das Cortes superiores, prática que levou a um ambiente de tensão institucional quase permanente e inspirou uma onda de ataques públicos contra magistrados que por algum motivo se colocaram no caminho do governo. Ministros como Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, para ficar só nos principais, foram elevados à condição de inimigos, seja em manifestações de rua, seja no vale-tudo que impera nas redes sociais. Moraes, alçado ao posto de desafeto número 1, está novamente na mira das hostes bolsonaristas por ter autorizado busca e apreensão em endereços de empresários apoiadores do governo, suspeitos de articularem um golpe de Estado para impedir uma eventual vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em outubro.
A gritaria da turba radical e a lista de adversários que essa turma julga ter no Judiciário devem aumentar nos próximos dias. Em 12 de setembro assumirá a presidência do Supremo aquela que é talvez a integrante mais dura com o governo: a ministra Rosa Weber. Foi dela, por exemplo, a decisão que suspendeu no ano passado vários dispositivos dos decretos de Bolsonaro que flexibilizavam a compra e o porte de armas, uma das prioridades da atual gestão. Também foi ela quem suspendeu temporariamente a execução das emendas do chamado “orçamento secreto”, cujas verbas bilionárias costumam ser destinadas a aliados do presidente sem critérios claros e sem transparência. E ainda foi de Weber a determinação para que a Procuradoria-Geral da República abrisse investigação para apurar se Bolsonaro prevaricou ao ser avisado de irregularidades na compra da vacina Covaxin. “No desenho das atribuições do Ministério Público, não se vislumbra o papel de espectador das ações dos Poderes da República”, escreveu a ministra, dando uma bronca pública na equipe de Augusto Aras. Além disso, a magistrada tem nas mãos casos de grande interesse do bolsonarismo, como as ações que questionam o perdão concedido pelo presidente ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) e a que apura supostos crimes do mandatário por convocar embaixadores estrangeiros para atacar as urnas eletrônicas.
Assim, ficam para trás definitivamente os tempos de um registro meramente burocrático da troca de guarda no comando do STF. De perfil técnico e discreto, a ministra deverá fazer uma gestão diferente de seus dois antecessores, Dias Toffoli e Luiz Fux, que buscaram manter um diálogo com atores do mundo político, em especial o presidente, a quem fizeram vários acenos, na maioria infrutíferos. Fux é um dos magistrados com melhor trânsito no Planalto — ele costuma dizer a interlocutores que considera Bolsonaro bem-intencionado. Com Weber, o chefe do Executivo estará às voltas na fase decisiva da campanha presidencial com dois ministros linha-dura à frente das principais Cortes envolvidas no processo, uma vez que Alexandre de Moraes é o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) desde o dia 16 de agosto.
O atual favorito às eleições, aliás, também não tem um bom retrospecto com Weber. Em 2018, Lula, condenado em segunda instância, foi preso depois que o Supremo negou a ele um habeas-corpus. O voto de Weber foi decisivo para o placar de 6 a 5 desfavorável ao ex-presidente. Sabidamente contrária à execução da pena antes de esgotados todos os recursos, ela decidiu seguir o entendimento consolidado até ali pela maioria. Já no ano seguinte, quando a Corte resolveu julgar a constitucionalidade da prisão em segundo grau, e não mais um caso concreto como era o de Lula, ela votou seguindo o seu entendimento. A jurisprudência do STF mudou e passou a proibir a execução antecipada da pena. Como reflexo, Lula foi solto. A ministra, que já teve o ex-juiz Sergio Moro como auxiliar no STF e agora convidou para trabalhar na presidência um magistrado que atuou com Teori Zavascki (relator da Lava-Jato, morto em 2017), costuma votar alinhada aos ministros tidos como pró-Lava-Jato: Fachin, Barroso e Cármen Lúcia. No plano pessoal, é também esse o grupo que mantém maior proximidade e amizade com Weber.
Nos tempos em que as decisões judiciais são temas de rinhas nas redes, com magistrados transformados em celebridades, ela destoa ao se manter longe dos holofotes — não dá entrevistas e suas manifestações são nos processos ou em raros pronunciamentos públicos. Indicada pela ex-presidente Dilma Rousseff, será a terceira mulher a comandar o STF — depois de Ellen Gracie e Cármen Lúcia —, e terá um mandato mais curto, até outubro de 2023, quando fará 75 anos e terá de se aposentar.
Nascida em Porto Alegre e oriunda da Justiça do Trabalho, na qual ingressou como juíza substituta em 1976 até chegar a ministra do Tribunal Superior do Trabalho em 2006, a “dama de ferro” do Supremo se distancia da primeira-ministra do Reino Unido que ostentou essa alcunha nos anos 80. Margaret Thatcher foi ferrenha defensora de políticas liberais. Weber, por outro lado, votou contra vários pontos da reforma trabalhista que chegaram ao tribunal, sendo, porém, vencida.
A ascensão de Weber também pode significar uma mudança na postura do Supremo em outras áreas. É esperado que as pautas progressistas, que marcaram a atuação da Corte nos últimos anos, avancem com mais rapidez. Em 2019, ela integrou a corrente majoritária do Supremo que enquadrou a homofobia e a transfobia como crime de racismo. O plenário entendeu que o Congresso estava sendo omisso sobre o assunto. “O direito à própria individualidade, identidades sexual e de gênero, é um dos elementos constitutivos da pessoa humana. O descumprimento de tal comando pelo Legislativo abre a via da ação por omissão”, disse. Desde a sua sabatina no Senado, em 2011, ela tem defendido que os juízes podem e devem resolver questões que estejam emperradas nos outros Poderes — o que os críticos chamam de “ativismo judicial”. Nessa linha, defendeu mais recentemente que cabe ao STF deliberar sobre a legalização ou não do aborto (ela é relatora de uma ação que pede a descriminalização da interrupção da gravidez até a décima segunda semana, que está pronta para ser julgada).
No futuro mais próximo, o principal papel de Weber deverá ser no pós-eleição. Se Bolsonaro for derrotado, uma eventual contestação do resultado poderá parar no Supremo. Nesse contexto, ela já deu mostras de que pretende ser firme. “As urnas eletrônicas têm sido usadas há 22 anos sem sequer um caso comprovado de fraude”, sustentou a então presidente do TSE, na véspera do primeiro turno de 2018. Se o presidente for outro, também caberá a Weber ajudar a garantir que a transição será pacífica e que o país não terá sobressaltos na troca de guarda no Palácio do Planalto.
Em termos de intransigência a ataques contra a democracia, a propósito, Weber é garantia de radicalismo do bem. Já é histórica a cena em que ela entregou um exemplar da Constituição a Bolsonaro logo após ele ser eleito, em 2018. “A democracia não se resume a escolhas periódicas por voto secreto e livre. É também exercício constante de diálogo e de tolerância”, advertiu a ministra, em recado ao novo presidente em sua diplomação. Bolsonaro pode não ter entendido direito a mensagem, mas certamente não tem dúvida alguma sobre o que pensa a mensageira.
Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805