Lula desenha estratégia pacificadora para a transição dos chefes militares
A ideia é que os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica sejam anunciados rapidamente - e, para liderá-los, o nome não deve ter resistências
No imaginário de muitos bolsonaristas, especialmente os que se concentram em frente aos quartéis desde o final do segundo turno da eleição presidencial, os militares estariam de prontidão para impedir que Lula tome posse no dia 1º de janeiro. O delírio golpista é alimentado por uma rede de notícias falsas espalhadas por grupos criados e operados pelos próprios manifestantes nas redes sociais. No mundo real, nada disso existe. Embora, de fato, alguns generais tenham severas restrições a determinados episódios que ocorreram durante o processo eleitoral, especialmente no que se refere a algumas decisões judiciais, as Forças Armadas consideram que o problema deve ser discutido e resolvido no campo político. O processo de transição nessa área, inclusive, já está em fase avançada, prova de que não há espaço para qualquer tipo de aventura. A ideia é que os novos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, sejam anunciados o mais rapidamente possível. Para chefiá-los, no posto de ministro da Defesa, a intenção do futuro governo é escolher um nome que não enfrente nenhum tipo de resistência.
Um dos favoritos ao cargo, entre vários candidatos, é o ex-ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) José Múcio Monteiro. No começo da semana, ele foi convidado para uma reunião com o presidente eleito. Múcio é conhecido pela habilidade como negociador e pelo bom trânsito que sempre teve entre os diversos espectros políticos — da direita à esquerda. O primeiro contato dele com a equipe de transição foi com o ex-ministro Aloizio Mercadante e a deputada Gleisi Hoffmann. Depois, encontrou-se com o vice-presidente Geraldo Alckmin. Na terça 29 esteve com Lula. A aliados, Múcio garantiu que não recebeu convite algum. A informação de que ele poderia assumir o Ministério da Defesa foi vazada pelos próprios petistas, para testar a repercussão do nome entre os militares. Não houve restrições, o que manteve o nome do ex-ministro no topo da lista.
O Brasil não tem inimigos externos, não tem litígios de fronteira e não enfrenta nenhum tipo de ameaça à sua soberania. A escolha do ministro da Defesa e dos comandantes, porém, se transformou em um assunto sensível diante da conjuntura política. Embora a possibilidade de uma quartelada exista apenas na fantasia de uns poucos, é notório o repúdio de certos setores do meio militar em relação ao futuro governo. “Assim como o presidente Bolsonaro não vai passar a faixa, alguns generais também não se sentem confortáveis em bater continência para alguém que foi condenado e preso por corrupção”, diz um general que ocupa um posto importante no governo. Isso, no entanto, não significa ameaça de insubordinação. “É apenas um sentimento”, esclarece. Lula e o PT sabem do problema e, por essa razão, a estratégia adotada pelo partido é substituir os comandantes das três forças de maneira consensual, indicando ao posto os oficiais mais antigos, sem interferência política, enquanto a Defesa será entregue a um civil de perfil moderado.
Para ajudar no aparo das arestas, Lula conferiu a um general reformado de sua estrita confiança a missão de iniciar a reaproximação com os militares da ativa. Marco Edson Gonçalves Dias, o “G. Dias” ou o “general do Lula”, como era chamado durante os oito anos em que cuidou da segurança do então presidente, coletou durante as últimas semanas impressões da tropa mais afinada com o bolsonarismo sobre a possibilidade de eventuais percalços antes e depois da posse do petista. Pelo lado político, as conversas são capitaneadas por Aloizio Mercadante, que tem laços familiares com o meio militar (o pai foi general do Exército, enquanto o irmão é coronel). Também têm participado das reuniões com a equipe petista para discutir a transição o ex-comandante do Exército Edson Pujol e o ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo. Os dois foram demitidos por Bolsonaro em abril do ano passado, após se negarem a defender certas posições controversas do chefe, como encampar um discurso contra as medidas restritivas impostas pela pandemia.
Os encontros recentes do grupo ocorrem em clima de paz. Aos interlocutores, Fernando Azevedo minimizou as manifestações dos bolsonaristas, rechaçou qualquer possibilidade de levante nos quartéis e recomendou que fossem anunciados ao mesmo tempo o ministro da Defesa e os novos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, sugestão que deve ser acatada pela equipe de transição. Com as indicações ainda neste ano, haveria uma automática transferência de função aos novos chefes antes da posse de Lula, o que evitaria eventuais constrangimentos para os que estão saindo e para os que estarão entrando, além de embutir um forte simbolismo de normalidade institucional. Para ajudar a arrefecer os ânimos, o atual comandante do Exército, general Marco Antonio Freire Gomes, fez chegar à equipe de transição o fato de ter reforçado a orientação para que seus subordinados se mantenham em absoluto silêncio nesse momento — por lei, os militares são proibidos de falar sobre política, mas nem sempre a determinação é seguida.
O presidente eleito acredita que esses movimentos coordenados serão capazes de debelar focos isolados de resistência e, mais importante, esvaziar as manifestações em frente aos quartéis, que continuam sendo estimuladas por declarações, muitas delas dúbias, de alguns militares. Nesta semana, por exemplo, o general Eduardo Villas Bôas publicou uma mensagem numa rede social para supostamente defender três colegas do alto-comando — um deles, inclusive, o provável futuro comandante do Exército — que estavam sendo criticados por não se pronunciarem sobre a posse de Lula. “Nesse momento extremo que a nação atravessa é imprescindível que a solidez das estruturas do Exército sejam preservadas. A história ensina que sempre que essas condições foram negligenciadas, produziu-se catástrofe para ela própria e para a nação”, escreveu. Até aí, nada além do óbvio, embora não se saiba exatamente a que o general se refere quando fala em “momento extremo”. O problema vem na sequência. “Nossa força, em algum momento, pode ser instada a agir. Vamos, portanto, assegurar a tranquilidade necessária para a tomada de decisões por parte de nossos chefes”, encerrou.
Em meados de novembro, o general já havia exaltado a “incrível persistência” dos manifestantes na frente dos quartéis. Em 2018, quando o STF se preparava para julgar um habeas-corpus que poderia livrar Lula da prisão, Villas Bôas, à época comandante do Exército, publicou uma mensagem enigmática em sua conta pessoal: “Asseguro à nação que o Exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. No dia seguinte, numa decisão dividida, o Supremo rejeitou o recurso do ex-presidente, que, condenado, foi preso logo depois. Anos mais tarde, o general, já na reserva e acometido de uma doença degenerativa grave, alegou que a mensagem não era uma ameaça, mas sim um alerta ao STF. A nova manifestação inoportuna de Villas Bôas parece simplesmente um blefe grosseiro para animar os insanos protestos na porta dos quartéis. Se o objetivo amalucado é insuflar um foco de guerrilha, será um tiro n’água em meio ao clima de paz criado entre o novo governo e as Forças Armadas.
Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818