Lula e Bolsonaro mobilizam campanhas para intensificar guerra da rejeição
Candidatos apelam a golpes baixos com o objetivo de rebater acusações e desconstruir o adversário
Dois dias depois do primeiro turno, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reuniu em São Paulo um grupo de frades franciscanos, recebeu a bênção e deu início a uma espécie de romaria eleitoral. Quase duas semanas depois, na segunda 17, encontrou-se com um grupo ainda mais numeroso de católicos, onde empenhou solidariedade aos ataques que os religiosos estavam sofrendo na esteira da tumultuada visita do rival, Jair Bolsonaro, a Aparecida (SP), no dia da padroeira. Lula prometeu amor, paz e democracia e disse que a intolerância contra padres e bispos que falam de temas como a fome nas missas vinha da “direita raivosa”, que prometeu derrotar nas urnas. Na quarta 19, foi a vez de encontrar lideranças evangélicas e lançar uma carta na qual prometia liberdade de crença e denunciava o uso eleitoral da fé e a proliferação de fake news tendo como alvo essa vertente religiosa, em que o seu adversário tem uma ampla vantagem nas pesquisas.
Do outro lado da trincheira, o adversário do petista também se mobilizou fortemente nos últimos dias dentro da estratégia de contenção de danos. Em Brasília, no domingo 16, já era início da madrugada quando Jair Bolsonaro decidiu que era preciso falar urgentemente com o seu eleitor. Pouco depois da 1 hora, ele gravou uma live para se defender das críticas por ter relatado em entrevista um confuso episódio no qual diz que “pintou um clima” com duas meninas venezuelanas, de 14 e 15 anos, que estavam “arrumadinhas”. A história virou um rastilho de pólvora nas redes, passou a ser usada pela oposição, geralmente associada ao termo “pedofilia”, e desencadeou uma operação de emergência. No mesmo domingo, ele foi ao TSE pedir a remoção de quaisquer vídeos sobre o caso. “As últimas 24 horas foram as piores da minha vida”, disse ao chegar ao debate da Band, no mesmo dia, já com a decisão favorável do ministro Alexandre de Moraes em mãos. A reação incluiria ainda uma visita da primeira-dama Michelle e da senadora eleita Damares Alves às famílias das adolescentes e um pedido público de desculpas do presidente.
Os dois movimentos foram concebidos como antídotos ao crescente movimento de ataques dos adversários na reta final do pleito. A campanha de Lula hesitou por semanas em fazer a mais importante declaração explícita aos evangélicos. Talvez tardiamente, acabou cedendo diante dos golpes recebidos das redes bolsonaristas, que espalharam fake news em massa, como a de que o petista fecharia igrejas e era favorável ao aborto e à liberação das drogas. Membros da coordenação de campanha de Lula avaliam como “muito positivo” o aceno, que, combinado com o apoio de políticos evangélicos, como a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) e a deputada eleita Marina Silva (Rede-SP), tenta ampliar a penetração em um território bolsonarista — segundo o último Datafolha, o presidente tem 66% contra 28% de Lula.
Os dois episódios também são os maiores exemplos do clima quente que se instalou na reta final da campanha. Com rejeições altas, ambos têm procurado atacar os pontos mais frágeis do rival, em uma espécie de tática da desconstrução. Um exemplo foi o primeiro debate do segundo turno, na Band, onde a troca de acusações foi a tônica. A expressão “mentira” e suas variantes foram repetidas 55 vezes, mostrando que a prioridade, mais do que discutir propostas ao país, era desqualificar o adversário. A estratégia busca principalmente reforçar a antipatia que alguns setores do eleitorado já nutrem pelo adversário. No caso de Lula, as maiores rejeições vêm de evangélicos, empresários, eleitores que ganham mais de dez salários mínimos e moradores do Sul e Centro-Oeste. Já Bolsonaro tem grandes dificuldades entre os mais pobres, menos escolarizados, desempregados e moradores do Nordeste (veja o quadro).
Faltando pouco mais de uma semana para a votação e com apenas 4 pontos de vantagem sobre o rival, segundo o último Datafolha, a coligação de Lula vai tentar barrar qualquer coisa que possa provocar estragos em um cenário tão apertado. Coordenadores da campanha estiveram com o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, pedindo mais firmeza e celeridade para suspender conteúdos mentirosos e de ódio das redes. Têm tido algum sucesso, como a desmonetização de canais bolsonaristas no YouTube e um inédito direito de resposta (vinte inserções no horário de Bolsonaro) a uma peça em que é chamado de “ladrão” e “corrupto”. A estratégia inclui ainda a mobilização nas redes a favor da “verdade”. Um desafio é equilibrar nas propagandas a veiculação de desmentidos e a apresentação de propostas. Os últimos comerciais traduzem o anseio, com um Lula “propositivo”, que fala em defender as famílias, combater a inflação e a fome e melhorar o ambiente de negócios.
Já Bolsonaro vai seguir na toada de jogar no rival a pecha de “corrupto”, com suas variantes, como a história de que o oponente foi o mais votado em presídios. Por isso, a presença do ex-ministro Sergio Moro no debate da Band foi visto como um “golaço” pela campanha. A expectativa é de que o ex-juiz vá a atos públicos e grave materiais para rádio, TV e internet. Também seguirá sendo explorada a fala de Lula “agradecendo” ao coronavírus (ele disse na pandemia que “ainda bem” que o vírus havia surgido para mostrar a necessidade de um Estado forte). Também há uma ofensiva, que inclui Michelle, Damares e aliados como o senador eleito Magno Malta (PL-ES), prevendo a peregrinação por templos do Norte e Nordeste para reforçar a pauta conservadora e demonizar Lula e o PT. Outra tática será atuar em segmentos em que Bolsonaro (em tese) tem alta rejeição, como a população negra. Na quarta 19, um vídeo afirmando que nas gestões do PT morriam mais pessoas negras foi compartilhado pelo deputado eleito Nikolas Ferreira (PL-MG). Ele criou um canal no Telegram chamado Operação Vira Brasil, para difundir conteúdo contra Lula, e recebeu 170 000 inscritos em cinco dias. Na tentativa de se contrapor a essa artilharia, o também deputado eleito André Janones (Avante-MG) tem enfileirado vídeos com ataques e fake news contra Bolsonaro, incluindo insinuações sobre um surreal pacto com a maçonaria.
Dentro desse clima de briga de rua, explodiu a quantidade de ações judiciais acusando o adversário de produzir notícias falsas e descontextualizadas. Entre 12 e 18 de outubro, foram apresentados ao TSE 68 processos (42 de Lula e 26 de Bolsonaro) de pedidos de resposta ou de retirada de conteúdo. Entre os temas que mais levaram a campanha petista a recorrer estão os votos dos presos em Lula (treze ações), cortes de vídeos em que o petista diz que no Nordeste morrem mais crianças e tem mais analfabetos (quatro), além de declarações antigas do vice de Lula, Geraldo Alckmin, criticando o PT (três). Do lado de Bolsonaro, as queixas são de impulsionamento irregular de conteúdos (seis), de peça em que o presidente é chamado de miliciano e criminoso (cinco) e de notícias de que o combustível vai subir após a eleição (dois).
Além desse reflexo mais imediato junto ao TSE, há consequências de longo prazo por essa campanha de baixo nível. Uma delas é a perspectiva de que o clima insuportável de polarização continue a contaminar o Brasil após o pleito. “Foi imposta uma narrativa de luta do bem contra o mal”, avalia Deysi Cioccari, doutora em ciência política pela PUC-SP. Outra consequência é o sumiço no debate de temas urgentes para a população como economia, educação e saúde. Se havia alguma esperança de que o segundo turno poderia ao menos permitir o enfrentamento de propostas, o que se vê é uma discussão pautada por ataques e contra-ataques. Considerando-se a pequena distância entre os presidenciáveis na reta final, as perspectivas não são boas: o que está ruim tende a piorar nos próximos dias.
Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812