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May respira

Depois de um golpe atrás do outro, a primeira-ministra conseguiu uma pequena vitória ao aprovar o adiamento do Brexit — mas os problemas continuam

Por Thais Navarro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h38 - Publicado em 15 mar 2019, 07h00

Berço do sistema parlamentarista, o Reino Unido preserva na Câmara dos Comuns uma liturgia tão rica em tradições, gestos simbólicos e trajes ornamentais que assistir a uma sessão pode ser uma diversão. Mas é com grande ansiedade e sem um pingo de humor que os britânicos têm acompanhado os debates e as votações nos últimos meses, sempre em torno do único assunto de conversas no país: o Brexit, nome dado ao divórcio da União Europeia após 46 anos de casamento. Na quinta-feira 14, a primeira-ministra Theresa May ganhou novo fôlego ao ser aprovado, por 412 votos contra 202, o adiamento — para no máximo 30 de junho — da data definitiva para a saída do bloco, antes prevista para 29 de março.

Foi uma semana eletrizante, na qual os membros do Parlamento votaram quatro vezes para tentar sair do impasse. Na terça 12, rejeitaram pela segunda vez o acordo de mais de 500 páginas negociado entre May e a Comissão Europeia. Na quarta 13, bloquearam a possibilidade de a separação acontecer sem acordo algum. Como ficaria então, sem acordo e sem saída abrupta? Os MPs, como são chamados, preparavam-se para jogar a toalha quando, finalmente, acertaram o adiamento da separação. Com aparência cansada e voz rouca, depois de dias de correria, de negociações de última hora em Bruxelas e de ainda ter de marcar presença junto à realeza na comemoração do Dia da Common­wealth, May reapresentara seu plano ao Parlamento com um apelo dramático: “Se ele não passar agora, o Brexit poderá estar perdido”. O trunfo da nova versão, após a primeira ter sido fragorosamente recusada em janeiro, eram ligeiras concessões obtidas junto à Comissão Europeia em relação à cláusula que vem emperrando o acordo: como implantar o divórcio entre a Irlanda (membro da UE) e a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido e, portanto, fora da UE).

A questão é um nervo exposto. Em 1998, depois de um conflito sangrento e cruel, a pacificação da Irlanda do Norte foi obtida com base em um pacto segundo o qual não haveria nenhuma fronteira rígida — ou seja, com controle aduaneiro, de passaporte e mercadorias — entre Norte e Sul. May e a Comissão Europeia resolveram procurar com calma uma solução para o enrosco; nesse meio-tempo, combinou-se que naquela fronteira, e só nela, a situação continuaria como está — saída a que se deu o nome de back­stop. A proposta rendeu gritaria geral porque, enquanto durar — e não há prazo-limite para isso —, o Reino Unido não se soltará completamente do bloco. Antes da votação, May arrancou da UE a promessa, em termos veementes, de que as autoridades europeias vão se empenhar em achar uma solução conjunta rapidamente. Não adiantou. Encarregado de avaliar se a tal promessa da UE mudava o estado das coisas, o procurador-geral, Geoffrey Cox, fiel escudeiro da primeira-ministra, deu-lhe uma facada nas costas e, em um parecer, considerou o compromisso da UE irrelevante. E o acordo de May, o do backstop, foi rejeitado por 391 a 242 votos.

“May só se mantém no poder porque ninguém quer pôr a mão no cálice envenenado do Brexit”, diz Tim Oliver, especialista em política britânica da Universidade de Loughborough, de Londres. Derrotada, May liberou seus ministros para votarem como quisessem no dia seguinte, quando o tema em pauta era outro, a saída sem acordo algum — o chamado no-deal. Na manhã da terça-feira, o gabinete divulgou planos contingenciais para essa hipótese, que incluem tarifa zero para alimentos e remédios importados, a título de proteger o consumidor, e altas taxas para componentes da indústria, como autopeças e vestuário, para blindar a indústria nacional. Desagradou a todos. A uns, por acharem que sofreriam competição desleal de mercadorias europeias; a outros, porque teriam de encarar aumento de preços e demissões. Também causou arrepios a previsão de bolsões para acomodar os caminhões que farão fila na alfândega, medida que trouxe à mente grandes engarrafamentos nas estradas costeiras. O no-deal acabou rejeitado por 321 a 278 votos.

Sony
NEGÓCIOS EM FUGA – Futuro incerto: a japonesa Sony (acima) mudou a sede para a Holanda, e a City de Londres (à esq.) teme perder o poder financeiro (Simon Dawson/Bloomberg/Getty Images/England Travel/Divulgação)
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Restou a votação de um adiamento do Brexit, sapo a ser engolido como último — e pouco eficaz — recurso. “Vou ser muito clara: votar contra a saída sem acordo e a favor da extensão do prazo não resolve nossos problemas”, disse May. “A UE vai querer saber como pretendemos aproveitar a extensão, e a Câmara terá de prover uma resposta.” Os líderes europeus têm reunião marcada para a quinta 21 e a sexta 22 e já avisaram May de que querem planos concretos antes de aprovar o adiamento. Para fechar o círculo do desalento, a rejeição ao no-deal não é definitiva. Se o quadro político permanecer como está, o dia da separação chegar, seja lá qual for, e o Parlamento não aprovar nenhum plano para a transição, o Reino Unido será obrigado a sair da União Europeia — e seja o que Deus quiser.

Se May ficar enfraquecida, apesar de ter respirado no fim da semana, ganharão força opções alternativas, como um Brexit à norueguesa — em que o Reino Unido sai da UE mas continua a aplicar suas regras comerciais — e a convocação de um novo referendo sobre a separação (no primeiro, em 2016, o “sim” passou por pouco, com 52% dos votos). Na possibilidade de renúncia de May, a oposição trabalhista pode tentar antecipar as eleições (embora as pesquisas indiquem vitória dos conservadores). Nenhum desses dois cenários, porém, resolveria o problema central — o Brexit continuaria vigorando e à espera de um acordo.

Enquanto os políticos batem boca, indústrias com sede europeia no Reino Unido estão indo embora, a maioria para Amsterdã, onde as condições de negócios são favoráveis. É o caso das japonesas Sony e Panasonic, seguidas por Nissan e Honda. Grandes bancos, como J.P. Morgan, Bank of America, Citigroup e Credit Suisse, estão transferindo funcionários e ativos para outros países, sobretudo a Alemanha. Esse movimento faz crescer o temor de que a City de Londres, centro financeiro global, perca relevância no pós­-Brexit. A bolsa de valores registra quedas recordes. Dados do governo para o trimestre encerrado em dezembro mostram que a economia cresceu ínfimo 0,2%. “A incerteza afeta investimentos e produz impacto negativo”, diz Barry Eichengreen, professor de economia da Universidade da Califórnia em Berkeley. Apesar do pequeno sucesso com o adiamento, a pobre garganta dolorida de Theresa May ainda terá muito trabalho pela frente.

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Publicado em VEJA de 20 de março de 2019, edição nº 2626

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