Musk x Moraes: os bastidores da suspensão da rede social X no Brasil
Exageros levaram para a arena política um embate que deveria ficar restrito aos tribunais e acabaram punindo milhões de pessoas que nada têm a ver com o caso
Em tempos de polarização acentuada, até questões técnicas, que deveriam ser decididas com base em regras preestabelecidas e consolidadas, tornam-se combustível para as disputas políticas. No Brasil, poucas autoridades estão tão inseridas nesse contexto de conflagração como o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Para partidos de esquerda, ele é um bastião da democracia por personificar a resistência do Judiciário à sanha golpista da extrema direita (o que, de fato, foi). Para bolsonaristas, não passa de um autoritário, entusiasta da censura e a principal ameaça à liberdade de expressão no país. Os dois lados têm versões conflitantes, mas, em conversas reservadas, convergem num ponto. Em tom de preocupação, alegam que, em determinadas situações, faltam a seus nomes de maior destaque duas qualidades fundamentais: temperança e autocontenção. Foi exatamente o que ocorreu no episódio da suspensão da rede social X no Brasil.
No ano passado, Moraes detectou as digitais do empresário e fanfarrão Elon Musk, dono do X, em mensagens que incitavam à desobediência a ordens do Supremo, o que é inadmissível, e defendiam o impeachment do ministro. O bilionário, que adula sistemas autoritários quando lhe convém e posa de paladino da moralidade, também reverbera há bastante tempo a tese de Jair Bolsonaro e companhia de que o Brasil viveria sob uma ditadura judicial. Fiéis à cartilha extremista, o blogueiro Oswaldo Eustáquio e o senador Marcos do Val (Podemos-ES), apoiadores do ex-presidente e investigados por endossar atos golpistas, passaram a expor nas redes sociais dados pessoais de policiais federais que comandavam casos contra eles. A lamentável tentativa de intimidação mirava principalmente um delegado que atua como braço direito de Moraes na investigação sobre a participação de Bolsonaro em uma tentativa de golpe de Estado. Simpático ao capitão e a Donald Trump, Musk sempre atuou para esticar a corda. O empresário ameaçou reativar contas de usuários investigados, mesmo que isso levasse ao banimento da plataforma no Brasil, e usou o nome do juiz do STF em mensagens de cunho escatológico. Tudo para confrontar “o ditador do Brasil”. Evidentemente, trata-se de um comportamento inadequado e que merece punição. A questão é qual e de que forma.
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As seguidas provocações levaram o ministro a incluir o empresário no inquérito das milícias digitais. Moraes também aplicou multas que ultrapassam 18 milhões de reais ao X, mas continuou sem ter as determinações judiciais atendidas. Em agosto, Musk fechou o escritório da empresa no Brasil e, na sequência, criou um perfil na rede social em que prometia expor decisões sigilosas do desafeto. A queda de braço entre eles ganhou tração (veja o quadro). No fim de agosto, o magistrado decidiu que, na falta de representantes da plataforma no Brasil, Musk fosse intimado pelo próprio X para que indicasse em 24 horas o responsável legal pela rede social. Não há previsão jurídica de intimações de quem quer que seja pelo X e, por lei, estrangeiros que estejam fora do país só podem ser intimados por um instrumento chamado carta rogatória. Fiel a seu estilo “sou dono do mundo”, o empresário reagiu com desdém à notificação. Moraes, então, monocraticamente, suspendeu a rede social, demonstrando ter a palavra final no Judiciário, mas também a tal falta de temperança, porque sua decisão teve um importante dano colateral: impedir que milhões de brasileiros acessem o X para trocar ideias, se informar ou trabalhar.
Havia um caminho mais lento, porém menos ruidoso, de levar a questão ao plenário do STF. Na quinta-feira 5, o ministro Nunes Marques indicou que pode fazer isso depois de ouvir a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República. Na balada emocional que aconteceu, a derrubada de uma das mais populares redes sociais do Brasil transferiu para a arena política o que era, ou deveria ser, um embate restrito ao Judiciário. A disputa travada entre o empresário e o ministro virou pauta de debates entre candidatos a prefeito, deu força a discussões sobre a viabilidade de processos de impeachment contra magistrados e vitaminou a pauta anti-STF como a mais estridente do ato convocado por setores da direita para o Dia da Independência, no qual Jair Bolsonaro já confirmou presença (leia a reportagem na pág. 22). Aqui aparece outra questão. Nem mesmo seus principais assessores sabem como Bolsonaro, com seu jeito irascível, vai se comportar diante das massas no 7 de Setembro e daqui por diante. Ou seja: o clima político no país está totalmente subordinado aos humores e emoções de seus personagens.
Na seara jurídica, que acabou em segundo plano diante da polarização do tema, Moraes ainda foi criticado por cometer outros equívocos — por exemplo, ao obrigar o pagamento diário de 50 000 reais em multa a cada brasileiro que tentasse acessar o X por redes virtuais privadas criptografadas, conhecidas como VPN, e determinar o bloqueio das contas da empresa de satélites Starlink, que também tem Elon Musk como acionista majoritário, para pagar a multa milionária imposta pelo Supremo. Sob a alegação de que as duas integram o mesmo “grupo econômico de fato”, o ministro considerou ser legítimo congelar os ativos de uma pessoa jurídica para quitar débitos da outra.
A medida pegou o mundo corporativo e até ministros do Supremo de surpresa, provocando reações. Por lei, mesmo que haja o mesmo acionista majoritário em duas companhias, bloquear o caixa de uma para executar a punição a outra só é permitido quando as contas de uma empresa são pagas com o capital da outra ou quando há indícios de fraude, o que não foi demonstrado em nenhum dos casos, explica Nicolo Zingales, especialista em responsabilidade das plataformas digitais e professor de direito da regulação da FGV. “Alexandre de Moraes e Elon Musk são duas pessoas com opiniões fortes e que gostam da tensão pública. Há exageros dos dois lados”, diz Zingales. “A reação do ministro foi muito agressiva em relação à Starlink e ao VPN. Teria sido ético e recomendável do ponto de vista da segurança jurídica validar a decisão no plenário do STF, mas o ministro não o fez”, completa.
Moraes submeteu a ordem de suspensão do X apenas à Primeira Turma do Supremo, da qual ele é o presidente, mas não deu chance para que os demais eventualmente contestassem uma medida tão drástica como o bloqueio das contas da Starlink. Depois de anunciar que não atenderia à determinação judicial, na terça-feira 3, a empresa anunciou ter bloqueado mais de 220 000 acessos ao X. Em comunicado, informou que recorrerá à Suprema Corte dos Estados Unidos, onde tem sede, para discutir o congelamento de seus ativos no Brasil, classificado por ela como “ilegalidade grosseira”. Também houve reação interna à iniciativa de Moraes. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) acionou o STF para que todos os ministros analisem a legalidade de punir indistintamente brasileiros que tentem acessar o X via VPN. “É uma medida sem amparo legal. Não se pode impor uma sanção sem o direito de defesa e o contraditório, ainda mais quando possui o potencial de atingir milhões de brasileiros”, diz o presidente da entidade, Beto Simonetti. Aguarda-se agora o recurso contra a suspensão do X, não julgado até o fechamento desta edição.
Não é a primeira vez que Alexandre de Moraes parte para cima de gigantes da tecnologia que se recusam a cumprir ordens de remoção de conteúdo. Meses antes das eleições presidenciais, ele tirou do ar o aplicativo de conversas Telegram depois que a plataforma não bloqueou contas do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, preso diversas vezes por determinação do ministro e hoje foragido. Na época, o aplicativo (que tem bem menos capilaridade e história no Brasil) pediu desculpas pela negligência e foi restabelecido. Beligerante, Musk, ao que parece, não está disposto a ceder tão facilmente. O empresário prefere uma rede social sem regulação, que permita de tudo, inclusive mentiras e propagação de ódio, o que rende bilhões a ele, fortunas a influenciadores e turbulências a governos e países. Do outro lado da trincheira, Moraes alega que age para impedir que o X seja usado às vésperas da eleição municipal para a difusão de mentiras, violência e discursos antidemocráticos. Os fins, no caso do ministro, podem ser nobres, mas exigem sensibilidade, racionalidade e ponderação — aliás, qualidades de um grande magistrado.
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2024, edição nº 2909