O mês de março de 2021 entrará para a história como o momento mais dramático da pior crise sanitária já vivida pelo Brasil. O país superou pela primeira vez a terrível marca de 2 000 mortes por dia, algumas delas de pacientes que nem sequer tiveram a oportunidade de ir para uma UTI porque não havia vagas — ao menos 23 dos 26 estados registram ocupação acima de 80% dos leitos, situação que inclui São Paulo, o mais rico e estruturado da federação, onde houve mortes na fila de espera. O avanço da pandemia colocou pressão nos governantes e foi acompanhado de medidas tomadas no afogadilho, como radicalizar o isolamento social — iniciativa que gera protestos e nem sempre é respeitada —, criar comitês hospitalares para escolher quem, entre os doentes, tem mais chance de sobreviver e providenciar contêineres para armazenar os corpos, em um eventual colapso da rede funerária. Em meio a esse cenário, a vacinação, a principal porta de saída para esse pesadelo, continuou em velocidade muito aquém da necessária, com planejamentos refeitos o tempo todo e seguidas frustrações em razão de atrasos.
Vacina do Covid 19
Com tantas más notícias, no entanto, acendeu-se ao menos uma luz no fim do túnel. O panorama exigiu que as principais autoridades do país se dispusessem a superar eventuais divergências e a tentar construir uma forma de atuação mais coordenada, guiada por algumas premissas básicas. Pressionados pela grave situação em seus estados, governadores de partidos e ideologias diferentes passaram a buscar saídas para enfrentar o gigantesco desafio. As conversas resultaram no documento chamado “Pacto Nacional”, lançado na quarta-feira 10, por 22 dos 27 chefes de Executivo estaduais. “Em mais de um ano de crise, é a primeira vez que temos um esforço de coordenação nacional como foi adotado em outros países. É um passo extraordinário, já que até agora estávamos no cada um por si e Deus por todos”, afirma o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB).
Chegar a esse esboço de pacto não foi fácil. Coube a Dino a espinhosa missão de contemplar no texto a visão de governadores antagônicos, divididos entre os que têm boa relação com Jair Bolsonaro, como o goiano Ronaldo Caiado (DEM) e o mineiro Romeu Zema (Novo), e outros que fazem oposição, como João Doria (PSDB), de São Paulo — este assinou a carta, mas ficou fora da articulação para facilitar a adesão dos governistas, preocupados em evitar que o movimento tivesse o tom de mais um embate entre o tucano paulista e o presidente. O esforço foi necessário para reverter o clima de levante que se insinuou na semana anterior, depois que Bolsonaro responsabilizou os estados pela crise, citando bilionários repasses da União — em reação, os governadores lançaram uma carta acusando-o de utilizar “instrumentos de comunicação oficial para produzir informação distorcida”. Com esse tom, a primeira carta teve a adesão de apenas dezesseis governantes. O grupo cresceu quando o discurso ganhou um teor menos acusatório. “Nesse momento da crise, o foco absoluto é na solução. Apontar culpados agora mais atrapalha do que ajuda. Vamos deixar o julgamento para depois”, resume o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB). O clima melhorou na segunda-feira 8, quando o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), coordenador do grupo, e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, selaram a paz no Rio. “Foi um momento importante para que pudéssemos apresentar um cronograma para março”, declarou Dias ao lado do auxiliar de Bolsonaro.
Cronograma e plano de imunização
O resultado final ficou mais próximo, de fato, do que se espera para o momento. Em tom moderado, o novo documento acerta ao defender os três pilares para frear o avanço do “maior adversário da nossa nação”: apoio a medidas preventivas (uso de máscaras, distanciamento social), ampliação do portfólio de vacinas à disposição e aumento de leitos para pacientes da Covid-19. Um dos itens mais importantes do ponto de vista político é a formação de um “comitê gestor” com representantes dos três poderes, que vai monitorar dia a dia o cronograma de vacinas e orientar ações que deverão ser postas em prática em âmbito nacional em momentos de crise, como cancelamento dos torneios esportivos, adoção de lei seca na madrugada e fixação de horários para toque de recolher. A criação de regras nacionais é uma das preocupações dos governadores, acossados por protestos em razão das políticas de fechamento do comércio que eles vêm sendo obrigados a adotar.
Para evitar novos ruídos e outra deterioração do ambiente, o grupo deverá ser coordenado pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que chegaram ao cargo graças ao Planalto, mas que têm sido importantes na construção de pontes entre os entes do Executivo — foi Lira, por exemplo, quem atuou como bombeiro para impedir que Bolsonaro fosse à TV fazer um pronunciamento crítico aos governadores.
O esforço concentrado já começou a render frutos. Com atuações decisivas de Lira e Pacheco, o Congresso aprovou o projeto de lei 534/2021, que destravou a compra de vacinas da Pfizer, e a MP 1 026/21, que autoriza estados e municípios a adquirirem imunizantes. A solução para o impasse com a Pfizer provocou duas imagens pouco comuns de Bolsonaro. O presidente, que se recusava a comprar o fármaco alegando que o laboratório queria se isentar de efeitos colaterais (o PL aprovado resolveu a questão), fez uma reunião virtual na segunda-feira com o CEO da farmacêutica, Albert Bourla, na qual pediu a antecipação de vacinas de um contrato para até 100 milhões de doses. A negociação envolveu até a participação ativa do ministro da Economia, Paulo Guedes. Bolsonaro enalteceu a empresa e disse que gostaria de fechar o acordo em razão da “agressividade que o vírus tem apresentado no Brasil”. A outra imagem incomum ocorreu dois dias depois, no Palácio do Planalto, quando ele apareceu usando máscara para sancionar o projeto e a MP. O presidente citou a mãe, Olinda Bolsonaro, de 93 anos, que recebeu duas doses da CoronaVac. A mudança de postura atingiu até os filhos Flávio e Carlos, que se mobilizaram nas redes sociais para propagandear que o pai sempre foi um adepto da vacinação. O presidente, no entanto, segue criticando as medidas de isolamento social e fechamento do comércio adotadas pela maioria dos governadores.
O movimento na direção certa se valeu até dos erros do país para tentar conseguir mais vacina. A crítica situação do Brasil em nível mundial — com mais de 270 000 mortos, tem 10% das vítimas da doença no planeta (2,62 milhões) — serviu para os brasileiros baterem com força em portas internacionais. Arthur Lira enviou um ofício ao embaixador da China, Yang Wanming, pedindo um “olhar amigo, humano e solidário” do maior fornecedor de vacinas e insumos hospitalares do mundo. O número 2 de Pazuello, o secretário executivo Élcio Franco, enviou ofício ao mesmo Wanming pedindo ajuda para comprar 30 milhões de unidades da vacina chinesa Sinopharm e apresentou uma justificativa dramática: “A campanha nacional de imunização corre risco de ser interrompida por falta de doses”, disse. O próprio Pazuello se reuniu com representantes ligados à Organização Mundial da Saúde para pleitear o envio imediato de doses do consórcio Covax Facility, do qual o Brasil é signatário, com direito a 42,5 milhões de unidades.
Ampliar a vacinação
Mas não só de poder público vive esse esforço concentrado. Tem sido cada vez maior o engajamento de empresários para ajudar a destravar o andamento da vacinação. O movimento Unidos pela Vacina (UPV), liderado por Luiza Trajano, do Magazine Luiza, vem conversando com governadores e prefeitos para identificar e sanar gargalos na campanha de imunização. Segundo Eduardo Sirotsky Melzer, CEO da EB Capital, a iniciativa, que envolve mais de 400 empresas, mobiliza os seus apoiadores para procurar diálogo com os governantes mais próximos. “Isso deu muita escala, velocidade e precisão no diagnóstico de cada região”, afirma. O movimento fez ainda uma pesquisa sobre os gargalos de vacinação em cada município — metade dos prefeitos respondeu. Os pedidos, segundo Melzer, incluem de geladeira com termômetro para guardar vacinas a rede de Wi-Fi para informatização de cadastros. As quatro empresas aéreas do Unidos pela Vacina — GOL, Latam, Azul e VoePass — transportam imunizantes a pedido do poder público. Outro grupo de empresários, organizados pela entidade Comunitas, enviou 186,6 milhões de reais ao governo João Doria (PSDB) para a construção de uma fábrica de insumos necessários à produção da CoronaVac. “Existe um esforço muito grande do setor privado”, afirma Maria Elisa Curcio, diretora jurídica e de relações institucionais da Ypê, que doou 1 milhão de reais para o projeto. A Amazon, outra companhia associada ao Comunitas, disponibilizou 5,3 milhões de reais. No total, já são 41 doadores, entre eles bancos e empresas de varejo, alimentação e saúde.
O movimento dos setores público e privado e o consenso que vem se formando sobre a necessidade de ampliar a vacinação podem ajudar o país a sair da pior situação. Apesar da crise aguda em março — dos 46 milhões de doses esperadas, devem chegar no máximo 25 milhões —, o horizonte para abril pode ser mais auspicioso, com a expectativa de o país receber cerca de 45 milhões de unidades, que incluem a entrega dos primeiros lotes do imunizante da AstraZeneca produzidos pela Fundação Oswaldo Cruz — a estimativa é de até 7 milhões de doses por semana. E também a disponibilização pelo Butantan de cerca de 15,7 milhões de CoronaVac.
A reação chega depois que o país já pagou um preço altíssimo pela demora no início da vacinação, provocada por um misto de incompetência de gestão e cegueira ideológica. Foram necessários um ano e mais de 270 000 mortes para uma mudança de postura dos governantes. Sem um esforço concentrado, não é possível vencer a guerra contra a pandemia. Que as principais autoridades do país tenham realmente aprendido essa lição.
Com reportagem de Tatiana Farah
Publicado em VEJA de 17 de março de 2021, edição nº 2729