Não é de hoje que Jair Bolsonaro demonstra desconforto com Hamilton Mourão — sentimento compartilhado pela família presidencial e pelo núcleo duro de aliados do capitão. No início do governo, quando o vice falava pelos cotovelos, muitas vezes emitindo opiniões contrárias às do presidente em assuntos variados, da legalização do aborto à conveniência de mudar a embaixada brasileira de Israel para a cidade de Jerusalém (veja o quadro), Bolsonaro resolveu dar um tiro de advertência, recomendando a seu companheiro de chapa um comportamento mais discreto e um cuidado maior com as “distorções” da imprensa. No auge da crise, Mourão chegou a dizer que poderia renunciar, conforme noticiou VEJA em abril. Depois disso, porém, a poeira começou a baixar. Nos últimos sete meses, segundo a agenda pública do vice, a média de encontros com jornalistas, que era de um a cada três dias até abril, caiu para um a cada seis dias. Missão dada, missão cumprida, portanto, como convém a um general de quatro estrelas reformado que preza a hierarquia.
A obediência não livrou Mourão de levar uma nova canelada do presidente (disparado, a mais humilhante de todas), quando Bolsonaro declarou que “casou errado” ao se referir à escolha do vice. A revelação foi feita no último dia 12, em um encontro com deputados do PSL no qual o presidente anunciou sua saída da legenda e a criação de um partido, o Aliança pelo Brasil. Segundo reportagem da jornalista Monica Bergamo, da Folha de S.Paulo, em frente aos parlamentares, o capitão disse que deveria ter escolhido o “príncipe” Luiz Philippe de Orleans e Bragança, hoje deputado federal pelo PSL e herdeiro da família imperial. Em um áudio enviado a apoiadores, Orleans e Bragança relatou que Bolsonaro atribuíra ao ex-ministro Gustavo Bebianno a elaboração de um dossiê contra ele e, com base nisso, o presidente desistira de tê-lo como companheiro de chapa. O tal dossiê teria fotos do “príncipe” em uma “suruba gay”, além de relatos de agressão a moradores de rua (leia a reportagem). Bebianno negou a história, Bolsonaro se calou e Mourão pôs a culpa da confusão na imprensa. A única certeza na história é que Orleans e Bragança foi mesmo trocado por Mourão em cima da hora do registro da chapa no TSE por ordem de Bolsonaro.
Enquanto o presidente reclama em público do vice, Mourão segue uma agenda própria. No lugar de entrevistas a jornalistas, vem priorizando encontros em ambientes empresariais. As participações em fóruns e palestras passaram de uma a cada 24 dias, nos primeiros quatro meses do ano, para uma a cada onze dias, desde maio. Nos eventos, o vice segue um roteiro-padrão: primeiro aborda a geopolítica mundial, com menção às tensões entre Estados Unidos, China e Rússia, até enveredar por uma análise dos problemas político-econômicos da América Latina. Por fim, passa a discursar sobre o Brasil, falando do que o governo tem feito e pretende fazer para reanimar a economia. A frase “tirar o peso do Estado sobre quem produz” é a deixa para a apresentação de slides em que Mourão defende a agenda econômica de Paulo Guedes, seu interlocutor frequente. As palestras foram combinadas com a equipe econômica. Munido de números e com uma desenvoltura inexistente em Bolsonaro, habituado desde a campanha a terceirizar qualquer explicação sobre o assunto ao “Posto Ipiranga”, o vice descreve o plano do governo como a união do equilíbrio fiscal, sustentado por reforma da Previdência, enxugamento da máquina pública, privatizações e desvinculação do Orçamento, à elevação da produtividade, baseada em concessões, desburocratização e desregulamentação. Em meio às tensões entre chineses e americanos, parceiros comerciais de primeira ordem do Brasil, e ao alinhamento do governo Bolsonaro com a Casa Branca de Donald Trump, Mourão defende “pragmatismo e flexibilidade”, com base na máxima de que “não existe amizade perpétua nem inimizade eterna”. O objetivo, diz, é “fazer do Brasil a mais vibrante e próspera democracia liberal ao sul do Equador”.
Com frequência, o vice é aplaudido pela audiência, que não deixa de notar e fazer comparações com o capitão. “Mais preparado”, “mais estudioso”, “visão mais abrangente” e “diferença notória” foram algumas das observações de empresários no giro recente de Mourão por Bahia, Sergipe e Santa Catarina. O discurso do vice não brada contra o socialismo e a esquerda constantemente, mas não deixa de atacar o PT, e inclui apelos por diálogo. “O clima de fla-flu contamina o restante da sociedade, e as coisas são levadas ao último extremo, as redes sociais deram voz a todo mundo, qualquer um se exprime, não admite argumentar, o argumento é quase ‘vamos pra briga, vamos pro tapa’. Com isso, a gente perde a civilização”, disse Mourão a empresários na Fecomércio da Bahia, há duas semanas.
Embora o vice tenha reduzido a exposição na imprensa para agradar ao chefe (procurado por VEJA, recusou-se a dar entrevista sobre sua relação com o presidente), o fato de se colocar como farol de moderação em um governo cada vez mais à direita é visto com reserva por aliados de Bolsonaro. A turma fica ainda mais ressabiada com a agenda de encontros políticos de Mourão. Ele recebeu, em um intervalo de apenas 64 dias entre agosto e outubro, os governadores de Rio de Janeiro e São Paulo, Wilson Witzel (PSC) e João Doria (PSDB). Ambos são ex-aliados de Bolsonaro transformados em desafetos por não disfarçarem a intenção de concorrer ao Palácio do Planalto em 2022. “Mourão não está preocupado em ser vice-presidente do Bolsonaro, está preocupado em ser vice-presidente do país”, diz um amigo do general, ressaltando o verniz institucional, que inclui ainda agendas com políticos de partidos de oposição, como o PT, e veículos de imprensa considerados “inimigos” pelo presidente, como o jornal Folha de S.Paulo e a Rede Globo. Diante de um relacionamento tão esgarçado com Bolsonaro, pessoas próximas a Mourão reconhecem que não dá para ter otimismo com o futuro. “A solução para o país seria Mourão como ministro da Casa Civil, para conduzir uma gestão integrada, enquanto o presidente se encarrega da agenda política, mas isso é inviável politicamente”, reconhece o general da reserva Maynard Marques de Santa Rosa, que há duas semanas pediu demissão da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência.
De Marechal Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, nos primórdios da República, ao racha entre Dilma Rousseff e Michel Temer, com direito a acusação de traição da petista contra o emedebista, não faltam na política do Brasil casos de relações conflituosas entre presidentes e seus vices. Muitas vezes isso ocorre porque eles acabam brigando para ocupar o mesmo espaço político. “Mourão foi escolhido na última hora e começou a dar palpites em uma Presidência que, aparentemente, não estava preparada para a vitória”, diz o historiador e professor de economia da FGV Luiz Felipe Alencastro. Considerando que Mourão está descartado da chapa de Bolsonaro em 2022, pessoas próximas ao vice já tentaram sondá-lo para planos políticos variados — de uma possível candidatura ao governo do Rio de Janeiro a um voo-solo para concorrer ao Palácio do Planalto. Mourão não deu sinal verde a nenhum desses projetos. A aliados, ele jura que, terminado o mandato, voltará sua energia para as partidas de vôlei de praia no Posto 6 de Copacabana. Segundo essas pessoas, Mourão leva em conta que estará perto dos 70 anos em 2022 e não tem, ao menos por enquanto, outras pretensões. Para um dos muitos ex-aliados que o presidente deixou pelo caminho no primeiro ano de mandato, a atitude resignada de Mourão depois do início espetaculoso é o melhor que ele tem a fazer no momento, voando abaixo do radar dos bolsonaristas, uma vez que seus recados de moderação e suas credenciais de “preparado” já são conhecidos. Seria a melhor tática para um general interessado em esconder o jogo do seu futuro político — e tentar evitar outras caneladas do chefe.
Colaborou Felipe Carneiro
Publicado em VEJA de 27 de novembro de 2019, edição nº 2662