A mudança será radical. Com a chegada de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto, os cargos mais relevantes da República serão ocupados por rostos desconhecidos da maioria da população. Foi isso que o candidato prometeu, e é isso que boa parte dos eleitores pedia. Depois de mais de duas décadas sob o domínio de PSDB e PT, que se alternaram no comando do país, os principais gabinetes de Brasília abrigarão neófitos na política, integrantes do baixo clero e expoentes da caserna, com destaque para generais da reserva. Os novos protagonistas do poder fazem parte de um círculo restrito que começou a se formar quando a candidatura de Bolsonaro ainda era tratada como uma aventura. Esse grupo se consolidou pouco antes do início da campanha, traçou as estratégias, que se mostraram bem-sucedidas, conquistou a confiança do presidente eleito e, agora, vai influenciar as principais decisões do futuro governo.
Durante a corrida presidencial, ninguém acompanhou Bolsonaro mais de perto do que Gustavo Bebianno, presidente em exercício do PSL. Ele fez de tudo um pouco: foi assessor, advogado, porta-voz e até puxador de aplausos quando o entusiasmo pelo candidato ainda era pequeno. A aproximação dos dois não foi obra do acaso. Bebianno conheceu Bolsonaro há menos de dois anos — e só o conheceu porque foi persistente. Para chamar a atenção do deputado, que já havia anunciado publicamente a intenção de se candidatar a presidente, mandou mensagens em redes sociais e passou a participar de seus eventos públicos. Quando finalmente conseguiu se apresentar, ofereceu-se para defender Bolsonaro num processo movido pelo deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ). Foi o pulo do gato para o advogado logo se tornar um conselheiro. O prestígio, porém, só seria alcançado um pouco mais à frente.
O círculo íntimo de Bolsonaro conta com um general, um economista, um advogado, um empresário, um senador e três deputados
No fim de 2017, Bolsonaro concluía as negociações com o Patriota, partido que havia escolhido para disputar a Presidência. A opção parecia perfeita. O Patriota não tinha um “dono”, havia elaborado um programa que acolhia todas as propostas do deputado e colocaria à disposição a estrutura que já estava organizada nas grandes cidades do país. Bebianno suspeitou que toda aquela boa vontade escondia um ardiloso plano do PT para sabotar a candidatura de Bolsonaro. O Patriota, segundo esse plano conspiratório, retiraria a legenda de Bolsonaro na hora H, deixando-o a ver navios. O assessor alertou o deputado sobre esse risco e redirecionou as negociações para o PSL. A teoria nunca foi comprovada, mas o advogado, a partir daí, conquistou a confiança do deputado — e passou a ser consultado sobre todo e qualquer assunto. Quando indagado sobre a insistência em conhecer Bolsonaro, Bebianno costuma dizer que viu nele um redentor da pátria, o único capaz de acabar com a corrupção no Brasil. Ele é cotado para o comando do Ministério da Justiça.
No grupo dos neófitos, outro destaque é Paulo Guedes, que comandará a Fazenda, ministério que na gestão Bolsonaro terá poderes aumentados. Entusiasta do liberalismo, Guedes foi apresentado ao deputado, até então um estatista militante, há menos de um ano. Deu-se uma comunhão de interesses. Um queria um candidato para defender suas ideias. O outro precisava de um nome para conquistar a simpatia do mercado. O economista, doutor pela Universidade de Chicago, chegou a dar aulas sobre rudimentos de economia ao então candidato, mas o projeto não foi longe. Guedes classificou Bolsonaro de “mau aluno”. O presidente eleito afirma que não dispunha de muito tempo e precisava correr atrás de votos.
Durante a campanha, a parceria entre o candidato e o economista não se desenrolou sem sobressaltos. Quando era questionado sobre algum tema econômico, Bolsonaro, admitindo sua ignorância na área, mandava o interlocutor perguntar a Guedes, o seu “posto Ipiranga”. Já quando Guedes enunciava uma proposta polêmica em nome da campanha, Bolsonaro logo o desautorizava. Eis uma das grandes dúvidas que rondam o novo governo: até quando eles trabalharão juntos diante de divergências postas e anunciadas?
Na área política, o deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS) cacifou-se como a principal estrela da constelação bolsonarista. Coordenador do programa de governo e o nome com mais experiência na equipe, Lorenzoni aproximou-se de Bolsonaro em 2005, quando militaram juntos contra a proibição da venda de armas de fogo no referendo do desarmamento. Chamado de “gauchão” pelo presidente, o futuro ministro costurou nos últimos meses a formação de uma base aliada destinada a garantir a governabilidade. Assim como o chefe, Lorenzoni jura que o apoio no Congresso não será obtido por meio da cartilha do fisiologismo e da troca de votos por cargos e outras benesses. O eleitor, alega, rejeitou a política tradicional nas urnas e exige modos republicanos de agora em diante. O discurso soa bem, mas a dúvida é a mesma de sempre: será mantido na prática? Reeleito deputado em outubro, Lorenzoni foi delatado como beneficiário de um repasse de caixa dois da JBS: 100 000 reais em 2014. Em resposta à acusação, gravou um vídeo no qual, emocionado, assumiu o erro e pediu desculpas. É o futuro ministro-chefe da Casa Civil.
Entre os assessores de campanha mais próximos do presidente eleito, quatro estão cotados para futuros ministros de Estado
Entre os novos expoentes do poder, o general Augusto Heleno é quem conhece Bolsonaro há mais tempo: quatro décadas, desde que foi instrutor dele na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). A aproximação, entretanto, só ocorreu mais recentemente. O general transformou-se em conselheiro do candidato, coordenou os grupos de trabalho encarregados de desenhar o esqueleto do governo e ocupará o Ministério da Defesa. A pasta terá papel central na administração de Bolsonaro, que pretende empregar as Forças Armadas, por exemplo, em ações de policiamento. Heleno só não foi candidato a vicepresidente porque seu partido, o PRP, não permitiu. O posto de vice acabou nas mãos de outro general, Hamilton Mourão (PRTB), a quinta opção para exercer a função. A primeira, aventada antes dos dois generais, era o senador Magno Malta, do PR. Chamado de “amigo e irmão” por Bolsonaro, Malta é defensor da prisão perpétua para crimes de pedofilia e da redução da maioridade penal. Ele não conseguiu se reeleger, mas, segundo o presidente, “certamente estará conosco”.
A derrota de Magno Malta foi compensada pela onda bolsonarista que inundou o Congresso. Um dos beneficiados foi o paraibano Julian Lemos, que conquistou a confiança do candidato a presidente enquanto fazia a segurança dele em João Pessoa, no fim de 2015. Lemos conta que chegou a arrendar a própria empresa de vigilância para se dedicar à campanha de Bolsonaro, que encontrava dificuldades de conquistar votos no Nordeste. O investimento foi recompensado: além de ter sido eleito deputado federal em outubro, Lemos ganhou a vice-presidência do PSL. Sem traquejo para articulações políticas, ele promete ser o cão de guarda de Bolsonaro na Câmara. Um cão de guarda que confessa andar armado até quando vai à padaria, que responde a processo com base na Lei Maria da Penha, aberto pela própria irmã, e que já foi réu por estelionato, em ação arquivada após a prescrição.
Outro nordestino que ascende com Bolsonaro é Luciano Bivar, ex-cartola do futebol, deputado federal eleito e fundador do PSL. Bivar praticamente entregou seu partido a Bolsonaro, renunciando à presidência e deixando os comandos nacional e estaduais nas mãos de Bebianno e demais aliados do presidente. Tudo feito no fio do bigode, sem formalização. O gesto abnegado tem razão de ser. Com a ascensão do PSL, que pode se tornar a maior bancada da Câmara depois do iminente troca-troca partidário, Bivar cogita disputar a presidência da Casa, mas o atual presidente, deputado Rodrigo Maia, será seu principal obstáculo.
Outra façanha da campanha de Bolsonaro foi transformar um deputado de baixo clero no senador mais votado do país: Major Olímpio, que se notabilizou pelo estilo estridente e por defender pautas ligadas à segurança pública, como a redução da maioridade penal. Eleito por São Paulo, foi um dos primeiros parlamentares a embarcar com Bolsonaro na “aventura do PSL”. Sem dinheiro nem tempo de TV, agarrou-se à imagem de Bolsonaro e acabou eleito senador com 9 milhões de votos, derrotando o veteraníssimo Eduardo Suplicy, do PT. Apesar do temperamento mercurial, Olímpio agia na campanha como um pacificador. De bombeiro, ele pretende agora passar a articulador, de preferência ocupando uma função de liderança no Senado em 2019, posto que está sempre às voltas com debates, divergências e disputas por votos. “A minha missão é ser a trincheira de um governo moralizador”, disse.
A folia dos Bolsonaros
Eles herdaram os olhos claros, o temperamento e o sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro. Flávio, 37 anos, Carlos, 35, e Eduardo, 34, são filhos do futuro presidente da República e surfaram na onda do pai. Flávio, o primogênito, conseguiu o salto mais extraordinário. Em 2014, elegeu-se deputado estadual do Rio de Janeiro com pouco mais de 160 000 votos. Agora, conquistou uma vaga para o Senado com impressionantes 4 milhões de votos. Eduardo, por sua vez, recebeu 1,8 milhão de votos em São Paulo e se reelegeu como o deputado federal mais votado da história. Carlos ainda está na metade de seu mandato como vereador do Rio, mas já sonha em disputar a prefeitura da cidade daqui a dois anos. Na campanha, os filhos tinham a missão de defender e impulsionar a imagem do pai nas redes sociais. Não foram poucos os bate-bocas, as confusões e as polêmicas em que se meteram, mas pode-se dizer que, ao final, foram bem-sucedidos. O sobrenome Bolsonaro agora é sinônimo de poder.
O presidente eleito nunca escondeu a ascendência que tem sobre a carreira política dos filhos — e os filhos fazem questão de exibir a sintonia com as ideias do pai. Em princípio, a harmonia do clã só vem para o bem, mas ela também pode causar dissabores. Na campanha, Eduardo provocou um conflito entre o presidenciável e o Supremo Tribunal Federal, quando veio à tona um vídeo em que ele afirmava que bastavam “um soldado e um cabo” para fechar a Corte. Policial federal licenciado, o deputado gosta de posar para fotografias com armas em punho. Na Câmara, fez questão de ter um gabinete vizinho ao do pai.
Os três filhos replicam o estilo agressivo e provocativo do presidente eleito. Carlos chamou recentemente um deputado petista de “vagabundo”, “canalha” e “lixo”. Na campanha, dedicou-se a criar epítetos desabonadores para os adversários. Flávio é o mais tranquilo do trio. Em 2011, quando a juíza Patrícia Acioli, que combatia o crime organizado, foi executada no Rio, ele postou a seguinte mensagem: “Que Deus tenha essa juíza, mas a forma absurda e gratuita com que ela humilhava policiais nas sessões contribuiu para ter muitos inimigos”. Com a repercussão negativa, apagou o texto.
Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2018, edição especial nº 2606