Quando descobriu a gravidez, aos 15 anos, S. logo pensou em fazer um aborto. Mas os 400 reais necessários para realizar o procedimento em uma clínica clandestina estavam longe de ser uma possibilidade em seu orçamento minguado. Expulsa da família e abandonada pelo pai da criança, a adolescente foi pulando de casa em casa de amigos e começou a vender brigadeiros em uma avenida na Zona Leste de São Paulo para conseguir o dinheiro. “Mas cheguei aos quatro meses sem juntar tudo”, diz ela, referindo-se ao limite máximo de tempo para interromper a gestação de forma segura. Hoje, a garota aguarda o nascimento de Anita, previsto para ocorrer daqui a duas semanas, dentro de um abrigo público. Ela busca a proteção no local porque afirma ter descoberto um plano do ex-namorado para vender o bebê em uma transação de adoção clandestina. “Tinha certeza de que iam me matar para abrir minha barriga e tirar de lá a criança”, conta. Após dar à luz, S. planeja concluir o ensino médio (está frequentando aulas do 1º ano), e seu sonho maior é poder sair do abrigo quando completar 18 anos. “Quero trabalhar, alugar uma casa e sustentar minha bebê.”
O drama de S. se repete em proporções absurdas no Brasil, que tem uma das mais altas taxas de gravidez precoce do mundo: 62 casos para cada 1 000 jovens entre 15 e 19 anos, índice aproximadamente 50% maior que a média mundial (veja o quadro). Até agora, o poder público fracassou no combate ao problema, que é provocado por desinformação sobre métodos anticonceptivos e desestruturação de famílias devido à situação de pobreza, entre outros fatores. No governo atual, Damares Alves, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, veio com um novo remédio para o mal: ela acredita que o incentivo à abstinência sexual pode ser uma arma para frear o registro de novos casos. “O método mais eficiente para a não gravidez não é a camisinha, não é o DIU, não é o anticoncepcional. Por que não falar sobre isso? Por que não retardar o início da relação sexual? Eu defendo essa tese”, afirmou, em maio, a ministra, que logo no início do governo contou ter visto Jesus Cristo numa goiabeira, depois de um traumático caso de abuso quando criança. Respeita-se evidentemente a visão religiosa de qualquer pessoa, mas é muito preocupante quando esse tipo de discurso começa a permear políticas públicas. Damares já apoiou o recolhimento em escolas dos ensinos fundamental e médio de cartilhas com instruções de métodos anticoncepcionais, material visto por ela como um incentivo à erotização precoce.
A defesa da abstinência também vai respingar em uma nova campanha do governo de alerta contra a gravidez na adolescência, a ser veiculada a partir da segunda-feira 3. As peças devem explicitar as consequências de gerar uma criança precocemente, como dificuldades de concluir os estudos e de entrar no mercado de trabalho. A intenção é fazer com que os jovens pesem a decisão de adiar a iniciação sexual. Damares diz que as propagandas vão combinar esse discurso com a educação sexual tradicional, sem deixar de enfatizar a necessidade do uso de preservativos, mas deixa claro que considera a abstinência o único método 100% eficaz. “É mais fácil entregar o preservativo na mão do que conversar. Escolheram o método mais fácil. Acharam que o jovem não estaria pronto”, afirmou a ministra a VEJA.
A nova campanha gerou grandes discussões entre a equipe técnica da pasta de Damares e a do Ministério da Saúde, comandado por Luiz Henrique Mandetta, de onde saiu o dinheiro para custear as propagandas. Segundo reportagem do jornal O Globo, notas técnicas responsáveis por embasar o projeto e que foram trocadas entre as duas pastas em janeiro mostram a dissonância na abordagem. O documento do Ministério dos Direitos Humanos dizia que a educação sexual “normaliza” o sexo entre adolescentes, enquanto o da Saúde considerava a orientação de métodos contraceptivos uma forma de prover ferramentas para que os jovens tomem decisões mais qualificadas. Na última semana, Mandetta veio a público afirmar que o lema principal da campanha não deveria ser a abstinência. Damares, então, foi ao Twitter declarar que sempre falou em “política complementar”, e “não em única e principal”.
Como base científica para defender a abstinência, a ministra cita um estudo feito no Chile em uma escola só para meninas em 2005. A pesquisa dividiu 1 200 alunas do 1º ano do ensino médio em dois grupos: um recebeu um programa centrado em abstinência, o outro não. As meninas foram acompanhadas por quatro anos, e chegou-se à conclusão de que o primeiro grupo, o da abstinência, teve incidência de gravidez cinco vezes menor que a do segundo. Embora antiga, a pesquisa é válida, mas não pode ser analisada de forma isolada. Para a produção de uma política pública, costuma-se levar em conta um conjunto de pesquisas acadêmicas. E a maioria delas diz que teses voltadas para a abstinência são ineficazes no controle da gravidez precoce. “Já se investiu muito dinheiro nisso nos Estados Unidos e no Chile, e os programas se mostraram ineficientes”, afirma a ginecologista Albertina Duarte Takiuti, coordenadora do Programa Saúde do Adolescente e de Políticas Públicas para Mulheres do governo de São Paulo. “No Japão e no Canadá, onde as taxas de gravidez na adolescência são baixíssimas, ninguém fala em abstinência”, completa a especialista, que trabalha também como médica-chefe do Hospital das Clínicas em São Paulo. Ali, ela atende casos de meninas grávidas com até 10 anos.
Um amplo estudo feito por pesquisadores da Universidade de Exeter, na Inglaterra, que analisou mais de 220 pesquisas sérias sobre educação sexual nas escolas, concluiu que “intervenções focadas apenas em abstinência são ineficazes para promover mudanças positivas no comportamento sexual”, diferentemente da instalação de clínicas em escolas e de programas centrados na prevenção. Não por acaso, a Inglaterra virou referência no combate à gravidez precoce. Educação sexual em peso nas escolas foi o que fez o país reduzir a taxa de natalidade entre adolescentes, uma das maiores da Europa nos anos 90: 62%, porcentual semelhante ao que o Brasil tem hoje. Nos anos 2000, o governo britânico tornou gratuito o acesso a métodos contraceptivos, o que incluía até a pílula do dia seguinte. Os resultados demoraram a aparecer, mas vieram: hoje, o índice está em 14%. Nos últimos dez anos, a diminuição foi ainda mais acentuada, de mais de 50%, seguindo a mesma proporção da queda no número de abortos no país, procedimento permitido desde 1967.
Na contramão das melhores práticas internacionais, a ministra Damares quer inserir o incentivo à abstinência nas políticas públicas. Concebido em sua pasta, o Plano Nacional de Prevenção ao Risco Sexual Precoce prevê a contratação de uma consultoria que vai avaliar resultados de países que mantêm a recusa ao sexo como método de controle de gravidez entre adolescentes, como Uganda, Chile e Estados Unidos. Previsto para ser elaborado ao longo deste ano, o plano terá uma versão piloto a ser desenvolvida em escolas públicas e unidades de saúde em três municípios e, depois, replicado ao restante do país.
Embora Damares sempre negue que esse tipo de atuação seja motivado por suas crenças religiosas (é ministra da Igreja Batista), a confusão é evidente. No ano passado, ela chamou um colega de crença, o pastor Nelson Júnior, para capacitar funcionários de sua pasta durante um seminário na Câmara dos Deputados. O religioso convidado para o evento encabeça o movimento Eu Escolhi Esperar, que encoraja os solteiros cristãos a esperar até o casamento para viver suas experiências sexuais. Considerada hoje uma das figuras mais populares do ministério de Bolsonaro, Damares também afirmou certa vez que “o país é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã”.
Seu perfil se encaixa perfeitamente em um governo que muitas vezes confunde Igreja com Estado, entidades separadas no Brasil desde a segunda Constituição da República, de 1891. Em algumas áreas, o slogan de Bolsonaro (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”) se materializa em ações direcionadas a implementar a chamada agenda conservadora de costumes, que agrada em cheio à base política e eleitoral evangélica do bolsonarismo. O aparelhamento vai desde a criação de critérios para determinar que tipo de produção cultural deve receber financiamento público até uma possível seleção de membros do Supremo Tribunal Federal (Bolsonaro prometeu indicar um ministro terrivelmente evangélico para a Corte). Na área da saúde, a pregação da abstinência é o exemplo mais preocupante dessa política. Educação sexual e liberdade de escolha (a possibilidade de um aborto legal) se mostram ao redor do mundo os métodos mais eficazes para combater a gravidez na adolescência. O único mérito de Damares foi ter posto esse tema na pauta de discussões nacionais. Mas é preocupante que ela esteja prescrevendo o remédio errado para evitar novos dramas como o da adolescente S. e de tantas outras jovens brasileiras.
Publicado em VEJA de 5 de fevereiro de 2020, edição nº 2672