Quando decidiram colaborar com a Justiça e revelar os seus segredos, os executivos da JBS fecharam o que logo foi chamado de “o maior acordo de delação do mundo”. Além de pagar uma multa de 10,3 bilhões de reais, a empresa arrastou para o centro das investigações da Lava-Jato uma lista imensa de autoridades da República. Entre os atingidos estavam o então presidente Michel Temer, gravado em uma conversa imprópria, e um de seus assessores, flagrado recebendo uma mala de dinheiro. Também foram alvo de acusações pesadas os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, senadores, deputados, ministros e governadores de Estado. As provas de pagamento de propina em praticamente todas as esferas de poder tinham um potencial tão devastador que o Ministério Público, em troca da colaboração dos empresários, ofereceu a eles imunidade total. Ou seja, confessariam a prática dos múltiplos crimes que cometeram, mas não seriam processados nem punidos. Esse e outros acordos de delação podem estar com os dias contados.
Delações premiadas como a dos executivos da JBS estiveram na origem do sucesso da Lava-Jato, combinadas com as prisões preventivas e o cumprimento imediato da pena depois de julgamento em segunda instância. Em novembro do ano passado esse tripé começou a ruir. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os réus condenados podem permanecer em liberdade até se esgotarem todos os recursos judiciais possíveis — o que costuma demorar anos e anos. O resultado prático da decisão foi a soltura imediata de alguns corruptos, como o ex-presidente Lula, e a sinalização de que a histórica impunidade dos crimes de colarinho-branco permanece viva. Agora, o presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, marcou para junho o julgamento que deve definir parâmetros para os acordos de delação, o que pode até provocar a rescisão de vários deles — a começar pela colaboração dos executivos da JBS.
Nos últimos cinco anos, foram firmados mais de 100 acordos pela Lava-Jato em Brasília, Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo. Foi por meio dessa ferramenta que o Ministério Público e a Polícia Federal conseguiram detalhar a extensão dos esquemas de corrupção no poder e rastrear os recursos públicos desviados dentro e fora do país. Apesar da efetividade, houve excessos que suscitaram questionamentos no STF. Os executivos da JBS foram acusados de omitir informações relevantes para a investigação. O Supremo decidirá se vai rescindir ou manter o acordo. Se o veredicto for pela anulação, o julgamento poderá provocar um efeito cascata, abrindo uma brecha jurídica para os delatados contestarem a validade das provas já apresentadas, o que pode gerar a nulidade de dezenas de processos em andamento.
O movimento para romper o acordo da JBS ganhou ainda mais força no fim de 2019, quando o procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou que havia “fatos novos pertinentes e relevantes” sobre a delação da JBS que mereciam ser analisados pelo ministro Edson Fachin, responsável pela validação do acordo. Estão sob análise novas provas referentes à relação da companhia com o BNDES. Em sua colaboração, o empresário Joesley Batista disse ter pago propina a partir de uma conta no exterior para as campanhas do PT em troca da liberação de empréstimo do banco estatal. No entanto, o próprio Ministério Público Federal acusou executivos da JBS de omitirem “detalhes das operações junto ao sistema BNDES-BNDESPar” e o fato de que técnicos do banco aderiram ao “esquema criminoso”. Uma das evidências mostra que um representante da instituição financeira viajou num jato particular e recebeu um jantar de luxo da companhia.
Além disso, investigadores afirmam que Joesley Batista escondeu informações sobre a sua relação com o ex-ministro Antonio Palocci, que recebeu mais de 2 milhões de reais da empresa para realizar uma “consultoria apócrifa” num negócio que envolvia o BNDES. Por essa razão, o MPF pediu que a JBS devolvesse mais de 21 bilhões de reais aos cofres públicos — e que os donos da companhia fossem processados por improbidade administrativa. Os mesmos fatos foram investigados na CPI do BNDES no Congresso, que, em sua conclusão, solicitou a rescisão e a revisão dos acordos de delação e leniência assinados pela JBS com o Ministério Público. “Há robustos elementos de prova a indicar que os delatores Joesley Batista, Wesley Batista e Ricardo Saud omitiram diversas informações e faltaram com a verdade nas declarações e depoimentos prestados à Procuradoria-Geral da República”, aponta o relatório da comissão. Os executivos negam as acusações.
Outro ponto controverso que pode ser analisado pelos ministros do STF se refere à validade dos acordos de colaboração fechados com a Polícia Federal. Em junho de 2018, o STF deu o aval para policiais celebrarem acordos de colaboração com criminosos sem a participação do Ministério Público. Apesar desse entendimento, alguns membros do Supremo se articulam para que o tribunal reveja a decisão e imponha amarras à atuação policial. Argumentam que a PF tem fechado acordos sem consistência e citam como exemplo os casos do ex-ministro Antonio Palocci e do ex-governador Sérgio Cabral. Em outra frente, o procurador Augusto Aras pretende disciplinar a forma como acordos de delação premiada e leniência são costurados. A ideia é criar uma espécie de comitê interno no Ministério Público para avaliar a conveniência de aceitar uma colaboração e a consistência dos relatos apresentados.
Por considerar que Palocci não tinha provas que sustentassem as revelações que prometia fazer, o Ministério Público recusou o acordo, que acabou assinado com a Polícia Federal. No caso do ex-governador, o impasse ainda não foi resolvido. Os procuradores dizem que a proposta de Cabral não pode ser aceita porque ele era o chefe da organização criminosa. A PF, por sua vez, quer fechar o acordo. “Essa é uma questão (delação feita pela PF) que terá de ser talvez reavaliada. Sopesou muito a ideia de que era preciso ter um certo equilíbrio entre o MP e a PF. Mas estamos com dois casos que são casos de escola. São informações que estão no Google, muita coisa de ‘ouvi dizer’ ”, disse o ministro Gilmar Mendes em entrevista ao jornal Valor Econômico, referindo-se aos acordos de Palocci e Cabral. Em várias ocasiões, Mendes, um duro crítico dos métodos da Lava-Jato, já previu que o Supremo precisará em breve rediscutir também o que ele considera abuso das prisões preventivas alongadas — o terceiro e último pilar da operação.
Atualização:
A assessoria da J&F enviou a seguinte manifestação a VEJA: “A J&F Investimentos rechaça qualquer acusação ou insinuação de omissão nos relatos feitos por seus executivos ao Ministério Público Federal. Tudo o que era de conhecimento dos colaboradores foi tratado nas dezenas de anexos, centenas de documentos, nos depoimentos e termos de declaração entregues às autoridades em 2017, além dos outros diversos depoimentos prestados em investigações abertas em decorrência do acordo de colaboração”.
Na nota, a empresa alega que uma auditoria externa não detectou evidência de corrupção nas operações com o BNDES e lembra que a relação de Joesley Batista com o ex-ministro Antonio Palocci é tema de um anexo específico da colaboração do empresário. “O que se vê é um esforço para se anular todas as provas produzidas e trazidas na colaboração. Mas a J&F e os colaboradores confiam no MPF e na Justiça brasileira para dar segurança jurídica ao que foi firmado nos acordos em 2017”, diz a companhia.
Publicado em VEJA de 8 de janeiro de 2020, edição nº 2668