Reza o lugar-comum que não existe vácuo na política. Quanto maior a debilidade do presidente, em tese a figura mais poderosa da República, maior o protagonismo de outras autoridades. É essa lógica que explica a perda de prestígio da tão decantada caneta Bic de Jair Bolsonaro. Com o agravamento da epidemia de coronavírus no Brasil, suas decisões têm sido revogadas ou ignoradas por representantes de outros poderes — e até de seu governo, como ficou claro na recusa do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em aderir aos apelos do chefe pelo abrandamento da quarentena. Hoje, a Presidência de Bolsonaro está diminuída. Tão diminuída que voltou a circular em Brasília a ideia de instituir o semipresidencialismo no país. Por esse modelo, o mandatário eleito em votação direta mantém as atribuições de chefe de Estado, como comandar as Forças Armadas e a política internacional, mas nomeia um primeiro-ministro para escalar o ministério, formular a política econômica e negociar com o Congresso — ou seja, governar.
Em tom de provocação, críticos de Bolsonaro dizem que esse arranjo já está em funcionamento, mesmo que de maneira informal. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, por exemplo, é chamado pelos colegas deputados de primeiro-ministro. Os motivos da honraria são conhecidos. É creditada a ele a responsabilidade pela aprovação da reforma da Previdência, apesar de o texto ter sido apresentado pelo governo. Em meio à crise do coronavírus, Maia pressionou o Palácio do Planalto a pagar a ajuda de 600 reais a trabalhadores informais sem que houvesse antes a aprovação de uma emenda constitucional que autorizasse essa despesa, como era defendido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. A posição do deputado, reforçada por integrantes do Judiciário e do Tribunal de Contas da União, prevaleceu no caso. Diante da suspeita de que Guedes não queria abrir os cofres públicos para atenuar os efeitos da pandemia no bolso da população, Maia também emplacou a aprovação na Câmara de outra mudança constitucional que derrubou temporariamente restrições legais a gastos públicos. Apelidada de “PEC do Orçamento de Guerra”, essa proposta está à espera de análise no Senado.
Até o fechamento desta edição o presidente da Câmara ainda tentava aprovar um projeto de socorro financeiro a estados e municípios bem mais generoso que o formulado pela equipe econômica do governo, mas aliados de Bolsonaro resistiam. A sombra de Maia desagrada tanto a Paulo Guedes que o superministro passou a afirmar que o parlamentar se acha mesmo um primeiro-ministro. O tom, obviamente, não é elogioso, mas de reclamação — e, por causa dessa disputa, a relação entre eles não é das melhores, para dizer o mínimo. No Senado, a situação também não é confortável para Bolsonaro. Conforme revelado pela coluna Radar, de VEJA, até o pacato comandante da Casa, Davi Alcolumbre, fez chegar ao presidente o recado de que uma eventual demissão de Mandetta não seria bem recebida pelo Congresso. Pela Constituição, a prerrogativa de nomear e demitir ministros é exclusiva do presidente da República. Essa regra só costuma ser contestada quando o ocupante do cargo está enfraquecido. No início de seu segundo mandato, Dilma Rousseff foi obrigada a demitir Cid Gomes, hoje senador, do cargo de ministro da Educação após pressão do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Foi uma das primeiras de uma série de derrotas impostas pelo emedebista à petista — o que resultaria no impeachment de Dilma.
Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre são filiados ao DEM, partido que, segundo Bolsonaro, trabalha para se aliar ao governador de São Paulo, o tucano João Doria, na eleição de 2022. A inclinação natural do presidente é tratá-los como expoentes de uma conspiração partidária. Embora o DEM e o PSDB possam marchar unidos no próximo pleito presidencial, essa tese não resiste aos fatos. A questão não é 2022, mas o momento atual. Por uma série de inconsistências no desempenho de Bolsonaro como presidente, deu-se o tal “vácuo de poder” — e a alta-roda de Brasília, é claro, se mexe para preenchê-lo. Sem nenhuma pretensão eleitoral conhecida, outros personagens da República têm se imposto ao Planalto. Na quarta-feira 8, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibiu Bolsonaro de derrubar as medidas restritivas impostas por governadores e prefeitos com o objetivo de conter o coronavírus. Na decisão, Moraes registrou seu inconformismo com a insistência do presidente em contrariar as recomendações sanitárias. Disse o ministro: “Lamentavelmente, na condução desta crise sem precedentes recentes no Brasil e no mundo, mesmo em assuntos técnicos essenciais e de tratamento uniforme em âmbito internacional, é fato notório a grave divergência de posicionamentos entre autoridades de níveis federativos diversos e, inclusive, entre autoridades federais componentes do mesmo nível de governo, acarretando insegurança, intranquilidade e justificado receio em toda a sociedade”.
O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, já havia avisado Bolsonaro de que, se ele assinasse um decreto para reabrir o comércio, o tema viraria um conflito federativo a ser arbitrado pela mais alta instância do Judiciário, que reconheceria a competência dos governadores para decidir o que abre ou fecha. Ou seja: o Supremo anularia o decreto presidencial. Já o ministro Gilmar Mendes, numa conversa com o próprio presidente no Palácio da Alvorada, afirmou que Bolsonaro poderia ser responsabilizado se confrontasse as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Depois, numa entrevista, chegou a tachar de “genocida” a intenção do capitão de atenuar as regras de quarentena. “O próprio presidencialismo agora passa por mudanças, e o protagonismo não tem vindo do Executivo com seu arsenal de técnicos. A situação é tão singular que o presidente não consegue demitir um ministro”, disse Mendes em uma conversa reservada.
Ministro do Supremo com maior atuação na seara política, Mendes retomou a defesa do semipresidencialismo em reuniões com parlamentares nas últimas semanas. Ele alega que o Brasil enfrenta crises de forma cíclica e que a instabilidade dos governos parece algo intrínseco ao regime presidencialista. Argumenta ainda que, após a redemocratização, dois dos quatro presidentes eleitos antes de Bolsonaro não chegaram ao fim do mandato: Dilma e Fernando Collor. Só esse dado seria suficiente para justificar o debate do tema. Uma minuta do projeto já chegou às mãos de várias autoridades — entre elas, o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército e hoje assessor especial de Bolsonaro. Por enquanto, o plano é reunir apoios à iniciativa, que só iria para a frente, se considerada viável, depois de superada a crise do coronavírus e valeria apenas para o presidente eleito em 2022. Pela proposta de Mendes, os primeiros-ministros podem ser destituídos caso percam apoio político e, portanto, não haveria necessidade de um crime de responsabilidade, pré-requisito para a abertura de um processo de impeachment.
No governo de Michel Temer, que também enfrentou a ameaça de impeachment, houve uma tentativa de levar adiante a proposta do semipresidencialismo. Deu em nada. A retomada do assunto agora é menos um prenúncio de mudança no sistema de governo e mais um sintoma da debilidade de Bolsonaro. Ganha corpo a impressão de que o presidente já não comanda como poderia, tem seu poder diminuído e é cada vez mais confrontado, e não apenas por adversários.
No último fim de semana, durante um jantar com Rodrigo Maia, políticos chegaram a dizer que o governo acabou. “A questão é saber se ele chega a 2022”, emendou Davi Alcolumbre, de acordo com o relato de um dos participantes do encontro. São opiniões recheadas de wishful thinking. Mas não há dúvida de que o presidente, com a crise do coronavírus, encolheu.
Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682