O tempo da polarização tóxica
Na era da rivalidade insidiosa e perversa, uma comparação com outros momentos parecidos na história do Brasil e com a realidade atual de outros países
No quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, o homem do carro de boi representa a rendição do artista à realidade. Dom Pedro I não poderia estar tão engalanado. Vestia, segundo testemunhas, uma farda simples, e que só poderia estar suja e desmazelada depois da difícil subida da serra entre Santos e São Paulo. Idem os numerosos assessores e integrantes da guarda que figuram no quadro. Também não poderiam, nenhum deles, estar montados nos cavalos elegantes com que o pintor os presenteou. Mulas eram o habitual, e o recomendável, para enfrentar as durezas do trajeto. Já o homem que, no canto esquerdo do quadro, se põe à frente do carro de boi veste andrajos que mal lhe encobrem o peito, está descalço e protege a cabeça com um chapéu de palha. É o retrato sem dúvida fiel de profissionais como ele, nesse e em outros períodos da vida nacional. E ainda expressa uma outra realidade, mais importante até do que a aparência física. O homem volta-se como intrigado para aquela gentarada. Por que tanto barulho? Que diabo deu neles? Digamos que o homem do carro de boi é o povo brasileiro.
Está na moda, entre os produtores de dicionários de língua inglesa, eleger a “palavra do ano”. O dicionário Oxford escolheu para este ano a palavra “toxic”, usada em múltiplos contextos — o machismo tóxico, o meio ambiente tóxico, as relações sociais, a cultura. No Brasil a palavra “polarização”, pela fidelidade com que representa a realidade política e social, e pela frequência com que apareceu na imprensa, nos estudos acadêmicos, nos debates e nas conversas, mereceria o título. E bem poderia ser acompanhada pelo adjetivo “tóxico”, pois a polarização de que se fala é sempre tóxica, quer dizer: venenosa, insidiosa, perversa.
Houve um tempo em que o povo brasileiro, tal qual o carreiro de Pedro Américo, assistia de longe, e indiferente, aos solavancos da política. Por que tanto barulho hoje? Que houve com a sociedade para apresentar-se tão dividida, e tão irascível, à convocação para as eleições de 2018? Os candidatos que representavam um ponto de equilíbrio entre os extremos foram impiedosamente dispensados pelo eleitorado. Ficaram para o segundo turno o candidato do PT, partido sobre o qual pesava a suspeita de voltar com sede de vingança pelos reveses do impeachment da ex-presidente Dilma e da prisão do ex-presidente Lula, e o ex-capitão do Exército que incluía em sua bagagem, além do antipetismo, do antiesquerdismo, do antiavanço nos costumes, do anticultivo dos direitos humanos e do antiprogresso em questões ambientais e indigenistas, o saudosismo da ditadura militar. Eram duas visões de um futuro desassossegado. Como chegamos a esse ponto?
Este texto explorará o tema em três vertentes: 1. A atual polarização comparada a outros momentos de polarização no passado brasileiro; 2. A polarização brasileira comparada a polarizações em outros países; 3. A polarização medida entre o ponto em que pode ser saudável e o extremo em que se torna ruinosa.
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O homem do carro de boi teve sua tradução literária na famosa frase com que, 67 anos depois da Independência, o jornalista Aristides Lobo descreveu a reação popular à proclamação da República: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada”. Antes, o cientista francês Louis Couty já havia radicalizado: “O Brasil não tem povo”. Não é assim tão fácil que uma população se eleve a povo, qual seja: uma sociedade orgânica, e politicamente ativa. A Revolução de 1930, ao acabar com o rame-rame das eleições de cartas marcadas da República Velha, diminuir o poder dos “coronéis” nas vastidões rurais do país e conferir direitos à classe trabalhadora, abre caminho para o surgimento no país de algo parecido com “povo”. Seguiram-se momentos de históricas polarizações, a começar por uma revolução, a de São Paulo em 1932. O país também conheceu a modalidade de polarização entre ideologias extremas que deu a volta ao mundo nesse período. Em 7 de outubro de 1934, um domingo, uma manifestação de integralistas (a versão brasileira dos fascistas) na Praça da Sé, em São Paulo, todos de verde e em formação militar, foi confrontada por uma contramanifestação comunista. Saldo: cinco mortos, dezenas de feridos.
A polarização atual não registra casos de enfrentamentos armados, como o da Praça da Sé, nem muito menos acena com a enormidade da guerra civil, como em 1932. Mesmo assim produziu episódios sangrentos, o primeiro dos quais o atentado a facada no candidato Jair Bolsonaro. Outro caso, que não costuma ser abordado no mesmo contexto, mas que a um certo olhar nele caberia ser encaixado, é o assassinato de Marielle Franco. A motivação pode ter sido de bandidagem pura e simples, trama de traficantes, de milicianos, ou uma combinação entre os dois. Mas Marielle, tal qual se revelou em sua plenitude depois do episódio, era um poderoso símbolo político, o da ascensão de uma classe, de uma raça, de um gênero, de uma atuação pública e de um estilo de vida que, hoje ficou claro, incomoda muita gente. A raiva é um dos ingredientes — dos mais tóxicos — da atual polarização. Em 1963-1964, nos meses que antecederam o golpe, tivemos uma polarização nos moldes direita-esquerda como a atual. Houve raiva como neste último ano? Parece que não no nível rude e personalizado das diversas manifestações em que o boneco de Lula era exibido em trajes de presidiário.
A raiva vinha sendo cevada de longe. Há quase unanimidade entre os analistas em que a polarização data das manifestações de 2013. “Desde a crise política iniciada em 2013, o que se pôde observar no comportamento dos atores políticos e institucionais, assim como no dos setores mais polarizados da sociedade brasileira, foi uma mudança de padrão da condução de seus conflitos políticos”, escreve o jurista Oscar Vilhena Vieira em seu novo livro, A Batalha dos Poderes. A competição, para ele, tornou-se “mais dura, intolerante e radicalizada”. Em 19 de junho de 2015, o chão da Avenida Higienópolis, em São Paulo, amanheceu com uma gigantesca pichação: “Jô Soares morra”. O pedido dirigia-se ao morador do edifício situado em frente. Dias antes, Jô cometera o pecado de fazer uma entrevista com a presidente Dilma Rousseff. “A primeira providência que tomei foi não seguir o conselho e não morrer”, diz ele, no novo volume de suas memórias. Em 3 de junho de 2017, foi a vez de outra pessoa conhecida, a jornalista Miriam Leitão, sofrer o fogo da indignidade, agora vindo dos boçais da banda contrária. A azoada contra ela começou no aeroporto de Brasília, da parte de um grupo de vinte petistas que, convenientemente trajados com camisa vermelha, voltavam da convenção nacional do partido, e prosseguiu durante o voo até o Rio de Janeiro. Sucederam-se os “gritos, slogans e cantorias”, acompanhados por “olhares de ódio ou risos debochados”, relatou a própria Miriam em sua coluna no jornal O Globo. “Houve um gesto de tão baixo nível que prefiro nem relatar aqui.”
Note-se que eram pessoas investidas de funções oficiais no partido, como delegados a uma convenção. Note-se também que, somados, os dois casos mostram uma convergência entre os extremos: devotam igual raiva à imprensa profissional e independente. Sofrem mais, pela visibilidade que lhes confere a presença de câmeras e microfones, os profissionais da televisão, com destaque para a TV Globo, alvo preferencial tanto de petistas quanto de bolsonaristas. O repórter da Rede Globo Tonico Ferreira, aos 51 anos de profissão, dos quais 37 na emissora, decidiu aposentar-se em abril por causa, entre outros motivos, da hostilidade de que é frequente vítima nas ruas. “Nos últimos tempos, toda manifestação é um problema de segurança para os jornalistas”, disse ele ao jornal Folha de S.Paulo. “Pode ser do Bolsonaro, do PT, é pressão enorme para as equipes de rua. Quando junta gente, se você cai, todo mundo dá um pontapé anônimo.”
Aos períodos de polarização é indispensável a presença do povo na rua. O mês de março de 1964 começou com as “marchas da família com Deus pela liberdade”, contra o governo João Goulart, em diversos estados, e no dia 13 tomou o rumo contrário no comício da Central do Brasil, em torno do presidente. A imprensa da época registra presença maciça, de até 300 000 na primeira das marchas da família, em São Paulo, e de até 200 000 no comício pró-Jango. Em 1968 ganhou o nome de Passeata dos Cem Mil a maior das sucessivas manifestações no Rio de Janeiro contra o governo militar. A acreditar neles (chutava-se mais do que hoje, nos cálculos), são números expressivos para um país que foi de 72 milhões de habitantes, em 1960, a 93 milhões, em 1970, não muito distantes dos que se estimaram hoje, num país de 210 milhões, para as manifestações de 2015 contra o governo Dilma. Não é pela presença nos atos políticos, portanto, que se considerariam as manifestações de hoje maiores do que as do passado. O que faz a diferença são as redes sociais, a atrair, para o bem ou para o mal (principalmente para o mal, consideradas a grosseria e a estultícia reinantes nesses ambientes), a atuação maciça da população.
Tudo considerado, temos três critérios por meio dos quais avaliar se a polarização de hoje é maior do que as polarizações passadas. O primeiro é a dose de extremismo das posições, e nesse caso temos empate entre o momento atual e o que dele mais se aproxima, o ambiente de 1964: em ambas as ocasiões, configurou-se um confronto nítido e inconciliável entre direita e esquerda. O segundo é o nível de participação da população, e aqui as redes sociais fazem a diferença em favor do momento atual. O terceiro é o teor de raiva inerente à disputa, fator com alto grau de subjetividade, mas que, até pelo depoimento de pessoas que viveram um momento e o outro, parece pender para a polarização presente.
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“Com uma rapidez que deixaria perplexas futuras gerações, a luta na Europa entre fascismo e democracia mal havia terminado e já fora substituída por uma nova ruptura, a que separava comunistas de anticomunistas.” A citação é do historiador inglês Tony Judt, em seu monumental Pós-Guerra. Com rapidez que nos torna perplexos a nós, habitantes do planeta Terra neste ano de 2018, o mundo passou da bipolaridade Estados Unidos-União Soviética para, apenas trinta anos depois, a bipolaridade entre Estados Unidos-China. Parecia destinado a vida tão longa, e no entanto durou tão pouco, o período de domínio solitário dos americanos. A prisão no Canadá, a pedido dos Estados Unidos, no início de dezembro, da executiva chinesa Meng Wanzhou, filha do fundador da empresa de tecnologia Huawei e sua diretora financeira, levou-nos de volta a ações habituais na Guerra Fria, quando americanos e soviéticos se davam a sequestrar pessoas e aviões espiões um do outro. Desenhou-se no horizonte, mais nítida do que nunca, a ultra-hipermegarrivalidade entre dois países em que ao poder militar se soma uma equiparação tecnológica da qual a China parece cada vez mais perto.
Há quase unanimidade entre os analistas em que a polarização atual data das manifestações de junho de 2013
À sombra dessa mãe de todas as polarizações desenham-se as diversas polarizações internas, nos países. É o que não falta, mundo afora. Abordemos as três que nos interessam mais de perto — as da Venezuela, da Argentina e dos Estados Unidos. Elas oferecem modelos diante dos quais nossa polarização alterna movimentos de atração e repulsa. A Venezuela foi um dos fantasmas acionados contra o PT na campanha. E com razão: o partido de Lula entrincheirou-se na solidariedade para com o regime dito bolivariano, num estratagema de deliberada cegueira diante do desastre político, econômico e social ali em curso. Some-se a isso a falta de autocrítica aos desatinos da política econômica de Dilma e estava servido, farto e saboroso, o prato com que os adversários alimentaram o prognóstico de que, com a vitória do PT, o Brasil se tornaria uma nova Venezuela.
A polarização no país de Hugo Chávez e Nicolás Maduro teve por resultado a asfixia gradual da oposição e a instalação da ditadura ao modo conta-gotas vigente — uma eleição fraudada aqui, um texto constitucional invertido ali, um líder opositor preso acolá, um ato de censura à imprensa mais adiante. Um dos livros do ano é Como as Democracias Morrem, dos professores americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Os autores ensinam que, com a saída de moda dos golpes com tanques, à maneira do Brasil 1964, ou com bombas (Chile 1973), hoje é assim que regimes como os de Recep Erdogan, na Turquia, Viktor Orbán, na Hungria, ou Rodrigo Duterte, nas Filipinas, se aproveitaram de uma situação democrática para dissolvê-la passo a passo. Entre eles, Duterte é o mais descarado. No começo de dezembro disse num comício, referindo-se ao alto clero católico, religião predominante no país: “Esses bispos que vocês têm, matem eles. São idiotas inúteis. Tudo o que fazem é criticar”.
O modelo venezuelano de polarização tem origem no governo. Em sua posse na Presidência, em 1999, Chávez já disse a que veio, ao jurar sobre “essa moribunda Constituição”. Ele não perdeu ocasião de fustigar a oposição, ameaçá-la e acuá-la, quando não batia, com suas milícias, prendia, com sua polícia, e, pela mão de uma Justiça subjugada, condenava. O modelo diferiu, nesse particular, do caso brasileiro, no qual a origem remota da atual polarização está na oposição, mais propriamente no gênero de oposição adotado pelo PT — intransigente, arrogante, exclusivista e dono da chave da história. A derrota eleitoral do PT afasta o fantasma da venezuelização pintado por seus adversários. Resta que o bolsonarismo, tão distante ideologicamente, tem um ponto de contato com o chavismo na tendência a misturar o governo com o estamento militar. No começo da era Chávez, Bolsonaro fascinava-se com ela. “Chávez é uma esperança para a América Latina e gostaria muito que essa filosofia chegasse ao Brasil”, disse o então deputado, em 1999, numa entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. O que o fascinava, claro, era a ascensão dos militares ao poder. Continua fascinando. Presidente eleito, encheu o ministério de militares da reserva e tem nas cerimônias militares seus compromissos mais frequentes.
Na Argentina, o modelo de polarização ampara-se na dicotomia entre peronismo e antiperonismo. Mais de seis décadas depois de sua primeira e mítica passagem pelo poder (1946-1955) e mais de quatro depois da fracassada segunda vez (1973-1974), Perón continua vivo e conduzindo seus seguidores cada vez melhor, assim como Carlos Gardel continua vivo e cantando cada vez melhor. Para o escritor Marcos Aguinis, no livro O Atroz Encanto de Ser Argentino, o peronismo não é um partido político nem apenas um “movimento”. É “crença, sonho, conduta e até folclore”. Para Jorge Luis Borges, os peronistas não são nem bons nem maus; são “incorrigíveis”. O pêndulo entre peronismo e antiperonismo domina a vida argentina já vai para dois terços de século, e seu resultado mais concreto é travar a sociedade e os diversos governos num estéril ponto morto. Nem se recupera um passado idealizado nem se avança sem amarras rumo ao futuro.
Os conflitos são inerentes à democracia. O regime existe para processá-los de forma pacífica. Falta de conflito é ditadura
A possibilidade de um peronismo à brasileira surgiu no horizonte, nos últimos tempos, em torno da figura de Lula. Foi impressionante que o ex-presidente, mesmo acusado de múltiplos crimes, mesmo depois de condenado em primeira instância, e mesmo depois de preso, ainda liderasse as intenções de voto para a Presidência, chegando a quase 40% enquanto ainda pendia na Justiça Eleitoral o julgamento sobre a legalidade de sua candidatura. E foi impressionante como, impedido de concorrer, catapultou o substituto pouco conhecido à disputa do segundo turno. A eleição de 2018, em paralelo ao duelo entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, magnificou o confronto entre petismo e antipetismo. Eis-nos a replicar o modelo argentino entre ser alguma coisa e ser “anti” essa coisa. O petismo parece enfraquecido depois da derrota eleitoral. Resta saber se a jararaca, como Lula apelidou a si próprio, desta vez foi ferida na cabeça, ou se ainda terá forças para reconstituir-se num mito à altura do argentino, envolto, como o outro, num misto de saudade do passado e miragem de um futuro idílico.
Nos Estados Unidos, a polarização atual é produto de uma raiva nascida à direita, no seio da intolerância com os governos democratas de Bill Clinton e de Barack Obama, no ambiente de acirramento das questões comportamentais, como o aborto, e sociais, como a imigração, e na apoteose da criação de um movimento como o Tea Party. Se é para escolher o momento preciso em que a polarização mostrou sua face mais traiçoeira, para a partir daí só avançar, digamos que foi o dia de 1997 em que Monica Lewinsky recebeu da amiga e confidente Linda Tripp o conselho de não lavar o vestido azul com a marca fatal do sêmen de Clinton, prova da relação entre o presidente e sua estagiária no escondidinho do Salão Oval da Casa Branca. Linda Tripp é o retrato acabado do que ia pela alma das frustrações conservadoras. Em 1999, Clinton escapou por pouco do processo de impeachment construído com base em seu caso com Lewinsky.
A polarização não nasceu com Donald Trump, portanto. Mas não se menospreze o aporte que o atual presidente vem lhe oferecendo, com doses de personalismo, impaciência com a crítica, linha dura com o imigrante, aliança com os religiosos, freio nos avanços comportamentais e simpatia com o que por lá se chama de “supremacia branca”. O coquetel trumpiano agrada à direita brasileira e a atrai. O estilo espalhafatoso de Trump, confrontador, viperino, trombeteado pelo Twitter, tem um admirador e um espelho no Bolsonaro dos lives via internet. Nem a esquerda americana observa o norte socialista que é ainda a bússola do PT nem a direita compartilha a reverência ao militarismo que é apanágio da direita brasileira. Lá ainda é sagrado que o secretário da Defesa seja um civil, para simbolizar a predominância do poder civil sobre o militar. Há no entanto traços de coincidência entre uma polarização e a outra, e temas em comum, como o aborto, as questões de gênero, os “valores familiares”, a imigração (agudo em Roraima, por exemplo) e o acesso às armas, alguns deles importados por força da tendência brasileira à imitação do outrora chamado “grande irmão do Norte”.
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Até que ponto a polarização pode ser saudável? E a partir de que ponto se torna ruinosa? Os conflitos são inerentes à democracia. O regime existe para processá-los e resolvê-los de forma pacífica, seja pela negociação que busque pontos de contato, seja pela vitória de um que não descarte nem humilhe o outro. Falta de conflito é ditadura, seja pela intimidação, pela censura, pela prisão ou pelo aniquilamento físico dos oponentes. Se o conflito é inerente à democracia, a polarização, que é o enrijecimento das posições e seu aquartelamento em duas facções, sem muita coisa de relevante no meio, pode ser tolerável enquanto regulada por instituições fortes. É o que ocorre nos Estados Unidos. Por mais que Trump se rebele contra a imprensa e chame de fake news as notícias que lhe desagradem, não se concebe que vá fechar o The New York Times. É o que não ocorre na Venezuela, onde o governo fecha estações de TV inoportunas.
São sem dúvida ruinosas as polarizações que terminam em golpes ou em guerras civis, mas, claro, essa sua qualidade só se revela a posteriori. A polarização americana em torno da escravidão, no século XIX, revelou-se tão impossível de resolver pelas vias institucionais que resultou na Guerra da Secessão. A polarização brasileira de 1964 hoje pode ser julgada tão ruinosa que resultou num golpe e numa ditadura; e tão, tão enormemente ruinosa, que poderia ter resultado em outro tipo de golpe e outro tipo de ditadura, caso tivesse vencido o lado contrário. Polarizações também são ruinosas quando geram paralisia. É o que ocorre há décadas na Argentina. O empate impede o país de sair do lugar, premido entre governos peronistas que desandam na demagogia, na corrupção e na incompetência (Isabelita, Menem, Kirchners) e governos antiperonistas que não logram sequer chegar ao fim (Frondizi, Alfonsín, De la Rúa). A polarização brasileira será julgada por seu desfecho, se desfecho houver. Se não houver, é porque foi contida nos quadros institucionais e seu andamento se dará na cadência desse benfazejo produto da ordem democrática que é a alternância no poder.
Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614